Tema que vem dominando a agenda política brasileira, o pensamento liberal tem sido vítima de reducionismos que o restringem à esfera econômica, em tese permitindo que ele seja vinculado a pautas conservadoras e mesmo intervencionistas na liberdade das pessoas, que representam, em essência, violação a firmes postulados liberais.
Contudo, as premissas políticas do liberalismo envolvem forte rejeição a qualquer forma de concentração de poderes, implicando em consistente defesa das Instituições em um sistema de controles recíprocos que possam evitar arroubos e decisões políticas personalistas. Nessa esteira, possibilitam maior segurança jurídica para o livre desenvolvimento das pessoas e da economia na esfera privada.
Assim, considerando que não há tradição de pensamento liberal pleno e genuíno na história brasileira, a Coluna de hoje apresenta as diferentes faces do liberalismo enquanto movimento teórico europeu de origem difusa, de distintas acepções e erguido sobre uma grande diversidade de ideias, com incursões no campo do direito, da economia, da política, na teoria da moral e na teoria da sociedade.
Ao final, constata-se que elas são conectadas e indissociáveis, sob pena de uma contrapor a outra e, desse modo, desnaturar as bases teóricas dessa importante vertente do pensamento moderno.
Apesar de haver menções ainda no período medieval, é comum considerar a Revolução Gloriosa inglesa (final do século XVII) como um dos principais pontos de partida para a reflexão liberal.
O liberalismo se desenvolveu nos séculos XVIII e XIX em oposição ao despotismo e se apresentou de formas diferentes, servindo para indicar desde um partido político, uma ideologia política ou metapolítica (uma ética) e até uma estrutura institucional específica, conforme explica Nicola Matteuci [1].
De qualquer modo, é possível encontrar uma base comum, assentada, segundo Olivier Nay, na seguinte intuição principal: “a sociedade é tanto mais justa e harmoniosa porque reconhece uma extensão importante à autonomia e à liberdade do indivíduo” [2].
Seguindo o itinerário proposto por Nay, essa base comum prescreve a primazia do indivíduo enquanto fundamento das relações de poder e revela três importantes bandeiras do pensamento liberal:
i) preferência do princípio da liberdade sobre o da autoridade, isto é o direito fundamental à autonomia, à segurança e à livre escolha do modo de vida e livre expressão de opiniões e pensamentos. Essa preferência se assenta em uma ética da responsabilidade (o indivíduo tem aptidão natural para decidir o que é racionalmente bom para si e para os demais) e na concepção de que a ordem jurídica tem o papel fundamental de garantir essa liberdade;
ii) a esfera privada tem valor superior à comunitária, devendo as instituições coletivas, como o Estado, realizar a função primordial de proteger o indivíduo;
iii) os poderes estatais devem ser controlados e limitados, de modo a evitar abusos de autoridade pelos agentes públicos [3].
Essas premissas levam a, ao menos, cinco grandes princípios do liberalismo:
i) a recusa ao absolutismo e, logo, ao totalitarismo,
ii) a defesa das liberdades individuais e políticas, o que pressupõe a crença no racionalismo humano, na perspectiva progressista (o amanhã será melhor que o hoje) e a exigência de garantia dos direitos fundamentais;
iii) pluralismo, que serve de garantia à livre expressão das formas de vida;
iv) soberania do povo e as questões de governo, vistas como assunto propriamente humano e não religioso e;
v) defesa da democracia representativa como forma de assegurar um governo estável e moderado, verdadeiro antídoto contra personalismos autoritários e populismos [4].
Autores críticos, como Antonio Carlos Wolkmer, enxergam o liberalismo como uma ideologia global instituinte de uma nova visão de mundo comprometida com uma ética individualista que marcou a luta da burguesia histórica contra o feudalismo autoritário [5].
Todavia, mesmo eles reconhecem a repercussão do liberalismo em diferentes aspectos da realidade. Esses aspectos perpassam e vão muito além da mera dimensão econômica, tendo incursões especialmente no campo político, moral e jurídico. Invocando Roy Magridis, Wolkmer apresenta três núcleos enquanto elementos caracterizadores do liberalismo [6].
Nessa perspectiva, o núcleo moral, ou liberalismo filosófico, propõe a afirmação dos valores assentados nos princípios da liberdade pessoal, do racionalismo, da tolerância, da dignidade e da crença na vida, formando uma cosmovisão global de proteção ao indivíduo [7].
Por sua vez, o liberalismo econômico está relacionado, especialmente, “aos direitos econômicos, à defesa da propriedade privada, ao sistema de livre empresa e à economia de mercado livre do controle estatal” [8].
Daí o direito de propriedade, direito à herança, direito de acumular riqueza e capital, bem como a liberdade de produzir, comprar e vender [9].
Já o núcleo do liberalismo político se refere, principalmente, “aos direitos políticos, ou seja, ao direito ao voto, direito de participar e de decidir que tipo de governo eleger e que espécie de política seguir” [10], direito de participar da Administração pública, dentre outros.
Seus princípios básicos são o consentimento individual, a teoria da separação dos poderes e a prevalência da soberania popular [11].
Esses princípios são combinados com os pilares do primeiro constitucionalismo, enquanto expressão do que pode ser considerado o liberalismo jurídico: defesa do Estado de Direito, do império da lei, da supremacia da Constituição e dos direitos e garantias individuais.
Enfim, é possível concluir que esses núcleos e/ou postulados do liberalismo são indissociáveis, de modo que os fins do liberalismo apenas se efetivam quando considerados em conjunto.
É impossível se pensar em liberalismo econômico sem pensar em liberdade individual e sem a segurança jurídica oriunda do sistema constitucional de controle e limitação do poder estatal.
Em suma, defender liberalismo econômico combinado com intervenção na seara moral ou dos costumes dos cidadãos ou mesmo com personalismo e concentração de poder contra as instituições, significa apoiar o sistema capitalista em regime politicamente autoritário, de forte viés antiliberal. (Revista Consultor Jurídico – 19/09/2019)
Marco Aurélio Marrafon é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), doutor e mestre em Direito do Estado pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional e membro do Cidadania de Mato Grosso.
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[1] MATTEUCI, Nicola. Liberalismo. In: BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 2vols. Brasília: UNB.
[2] NAY, Olivier. História das ideia’spoliticas. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 195.
[3] Idem.
[4] Ibidem, p. 196.
[5] WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 121.
[6] Ibidem, p. 122.
[7] Idem
[8] Idem
[9] Idem
[10] Idem
[11] Idem