É importante relembrar que já na Constituinte, Roberto Freire (PPS) e José Genoíno (PT) tentaram, junto com grupo triangulo Rosa, incluírem discriminação por orientação sexual na Constituição. E lá se vão 30 anos de luta desde que a nossa Carta Magna foi promulgada. Desde então, o país tenta construir uma legislação para combater a LGBTfobia.
Em 2013, logo depois de uma barganha onde o governo negociou com a bancada fundamentalista o fim do Projeto de Lei Complementar, de autoria da deputada Iara Bernardi, que criminalizava a LGBTfobia, propus através do então Partido Popular Socialista (PPS) ação sobre a omissão do congresso nacional em legislar sobre crimes de ódio contra LGBTS.
O próprio relator da ADO 26, ministro Celso de Mello, em seu voto, mostra seu espanto com a demora legislativa: ”A omissão do Estado mediante a inércia do poder público também desrespeita a Constituição, ofende os direitos que nela se fundam e impede, por ausência ou insuficiência de medidas, a própria aplicabilidade dos postulados da lei fundamental”.
Foram seis anos de discussões, conversas com ministros, debates, onde finalmente o Supremo, a PGR e a sociedade verificaram a total leniência do legislativo e colocaram em pauta nossa ação. No dia 23 de maio de 2019, veio finalmente a vitória, nossa ação obteve 6 votos favoráveis da Corte (a maioria, portanto) compreendendo que LGBTfobia é racismo.
Diversos países vem construindo legislações contra LGBTfobia: Canadá, Dinamarca, Espanha, França, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Suécia , Portugal entre outros. Nos Estados Unidos, o brutal homicídio homofóbico de Mathew Shepard criou a normativa. Mas no Brasil é a primeira vez que se consegue que a Suprema Corte reconheça a LGBTfobia como crime de racismo.
É fundamental deixar claro que o voto do decano Celso de Mello aceitou nossa tese, afirmando que LGBTfobia é racismo.
Em 2003 o STF julgou o famoso caso Ellwanger, onde precisava definir se sionismo era ou não racismo. Nas palavras da ementa do acórdão, da qual foi relator o ministro Maurício Corrêa: “Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais”. Nesta decisão, o Supremo afirma que todos os seres humanos podem ser vítimas da prática do racismo. Daí o alcance geral da decisão do STF, explicitada na ementa do acórdão: “A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Deste pressuposto origina-se o racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista”.
O conceito de racismo, como toda opressão de uma população contra outra, foi a base da nossa vitória na justiça. Diferentemente do que muitos afirmam, o Judiciário não legislou, nem julgou por analogia. A corte realmente respeitou a decisão que já existia sobre o conceito de racismo, pautado na ciência.
A importância desta decisão é tremenda, já que os crimes de injúria e difamação do Código Penal, por exemplo, não abarcam o discurso de ódio. Só o art. 20 da Lei antirracismo, ao criminalizar a conduta de “praticar, induzir ou incitar o preconceito ou a discriminação”. Por isso este é fundamental, por ser só ele que criminaliza a discriminação em geral e o discurso de ódio no Brasil.
Frisamos também que nosso intuito, nunca foi prender pessoas ou silenciar a fé alheia, as igrejas seguem podendo ter suas opiniões sobre o que é pecado ou não, mas vamos enfrentar os discursos de ódio proferidos. O direito penal já possui mecanismos alternativos, para, daqui em diante, punir de forma adequada LGBTfóbicos, seja com penas socioeducativas ou multas. Mas os agravantes, a imprescritibilidade, a prisão em flagrante serão ferramentas fundamentais no combate à morte e à violência.
Nosso objetivo não é aumentar o encarceramento, mas combater uma hierarquização de opressões. Todas as minorias socialmente atingidas e estigmatizadas devem ficar sob a guarda da lei geral de discriminações (lei 7716), que teve sua origem em 1989 e vem sendo atualizada. Hoje ela protege raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional e fica na falta de orientação sexual e identidade de gênero.
A legislação não deve ser vista como punitiva. Ela tem importante viés pedagógico. A lei de um país mostra o caminhar da sua sociedade, vide a Lei seca, a Lei de racismo, a Lei Maria da Penha. São regras que têm como principal objetivo dizer: esta sociedade não tolera o racismo, o machismo, e agora podemos dizer, com força, que não tolera o ódio contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais.
Essa não é uma vitória do Cidadania, do movimento LGBTI. É uma vitória da sociedade em prol da civilização e da dignidade humana. Enquanto um de nós não tem direitos civis, nenhum de nós tem direitos civis. O decano fala em seu voto: “Versões tóxicas da masculinidade e da feminilidade acabam gerando agressões a quem ousa delas se distanciar no seu exercício de direito fundamental e humano ao livre desenvolvimento da personalidade, sob o espantalho moral criado por fundamentalistas religiosos e reacionários morais com referência à chamada ideologia de gênero”.
O preconceito contra orientação sexual e identidade de gênero pode atingir todas as pessoas, e nosso Supremo Tribunal Federal, cumpre seu dever, ao formar decisão, até agora unânime, de que lgbtfobia é racismo e como tal deve ser coibido e punido. (O Estado de S. Paulo – 29/05/2019)
Eliseu de Oliveira Neto é psicólogo, professor, coordenador nacional do Diversidade23 e membro do conselho político da Aliança Nacional LGBTI