Cristovam Buarque: Não basta melhorar

Uma entrevista é como dueto musical entre entrevistado e entrevistador. Na edição de 12 de maio no Correio Braziliense, as jornalistas Ana Paula Lisboa, Dad Squarisi e Mariana Niederauer e o professor Mozart Neves Ramos fizeram esse concerto em que o leitor sente prazer. Além disso, deram uma aula de como enfrentarmos a tragédia de nossa deseducação. Na ótica do educador, conseguiram dizer como fazer uma escola e uma sala de aula que atendam às exigências dos tempos atuais.

Precisamos agora passar à visão educacionista que nos diga como levar essas ideias para as 200 mil escolas e aos dois milhões de professores que atendem aos 50 milhões de alunos da educação. Como levar para todo o país as boas experiências de escolas e de cidades em prática hoje no país.

O primeiro passo é não nos contentarmos em comparar onde estamos em 2019 com onde estávamos 1989, e buscarmos fazer o necessário para em 2049 estarmos tão bons quanto os melhores do mundo. Para isso, temos duas dificuldades: ainda não nos vemos como um país campeão em educação no mundo, nem temos o sentimento de que no Brasil toda criança deve ter acesso à educação com a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da família.

Por isso, a proposta de termos educação igual às melhores do mundo e igual para cada criança é vista como uma ingenuidade, uma impossibilidade ou demagogia. Vencer essa modéstia e essa maldade são nossos maiores obstáculos. Se não nos convencermos disso, vamos continuar comemorando pequenos avanços, mas ficando para trás em relação ao resto do mundo.

O professor Mozart e suas entrevistadoras nos ensinaram com extrema competência como mudar os pneus com o carro em movimento. Mas, se além disso, queremos também saltar para termos uma das melhores educações do mundo, vamos precisar mudar os pneus do carro e o carro também. O atual frágil sistema educacional municipal está melhorando, mas não nos coloca entre os melhores e não nos levará a uma escola de qualidade igual para todos. Para o salto, enquanto vamos melhorando o sistema municipal atual, será preciso também implantar um novo sistema nacional, paulatinamente por cidades, ao longo de 20 ou 30 anos. Para isso será necessário:

1. O Brasil entender que educação não é apenas um direito de cada brasileiro, como diz a Constituição; é mais que isso, é o motor do progresso econômico e da justiça social; ter cada um de seus cérebros em escolas de qualidade é uma necessidade do Brasil.

2. Concentrar o trabalho do MEC na educação de base.

3. Aos poucos, adotar pelo governo federal a educação de base nas cidades sem condições de dar uma boa escola a suas crianças.

4. Nessas cidades, implantar escolas novas, com professores de uma nova carreira federal, muito bem remunerada, com exigências de dedicação exclusiva e avaliações periódicas, em prédios novos e muito bem equipados com o que houver de mais moderno na área de tecnologias pedagógicas. E todas as escolas funcionando em horário integral.

5. Cada escola teria gestão descentralizada e liberdade pedagógica. A adoção federal deveria ser voluntária por opção da cidade, não por imposição da União. E seria feita com responsabilidade fiscal.

6. Considerando a média de 30 alunos por sala, para ter uma boa escola, o custo anual de cada aluno seria em torno de R$ 15 mil. Esse custo/aluno/ano permite pagar um salário mensal de R$ 15 mil ao professor dessa nova carreira. Se o Brasil voltar a crescer a 2% ao ano, ao final de 30 anos, esse novo sistema federal exigiria apenas 6,5% do PIB para atender aos atuais 50 milhões de alunos.

Isso tudo é possível financeiramente, mas muito difícil politicamente e quase impossível mentalmente porque nós brasileiros, eleitores e eleitos, não temos grandes ambições intelectuais como nação, e menos ainda temos compromisso de igualdade na educação. Além disso, não queremos alimentar uma ambição que exige décadas, porque nos contentamos com pequenos avanços rápidos. Por isso, é mais provável que continuemos avançando e ficando para trás, ampliando três brechas: entre educação dos ricos e dos pobres, entre nossa educação e a de outros países, e entre nosso nível educacional e as exigências educacionais para os tempos atuais. (Correio Braziliense – 21/05/2019)

Cristovam Buarque, ex-senador pelo Cidadania-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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‘Edição nacional’ dá forma a um ‘novo’ Gramsci

“Edição nacional” dá forma a um “novo” GramsciO século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” em seu tratamento quanto um relativismo interpretativo inconsequente.No campo das ciências sociais, Antonio Gramsci talvez seja o autor italiano mais traduzido no Brasil. Um autor sui generis já que, em vida, nunca publicou um livro e seus escritos foram, por escolha dos seus editores, publicados primeiramente a partir dos grandes temas que se entrecruzavam nos cadernos escritos na prisão, para só depois ganharem uma “edição crítica” que se esmerou em acompanhar a cronologia da escritura gramsciana durante seu encarceramento. Referimo-nos aqui à “edição temática” coordenada por Felice Platone e Palmiro Togliatti, publicada entre 1948 e 1951, e à “edição crítica” dos Cadernos do Cárcere, de 1975, coordenada por Valentino Gerratana.1Atualmente, os Cadernos do Cárcere, somados a textos escritos para jornal, cartas (de Gramsci e dos seus interlocutores) e traduções, compõem o escopo da denominada “Edição nacional”, cujo primeiro volume veio à luz em 2007 e já conta com 9 volumes publicados na Itália. A “Edição nacional”, coordenada pela Fondazione Istituto Gramsci e publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana – Edizione Treccani –, está projetada em quatro seções, a saber: 1. Scritti (1910-1926); 2. Epistolario (cartas anteriores e posteriores à prisão); 3. Quaderni del carcere (nova edição crítica e integral); 4. Documenti (dedicado à atividade político-partidária).2Com a difusão dos seus escritos, inicialmente, Gramsci foi visto tanto como o “teórico da cultura nacional-popular” quanto um formulador “da revolução nos países avançados do capitalismo”, de cuja obra se extraíram conceitos que o tornaram um pensador assimilado em grande escala. Ao longo de décadas, Gramsci foi utilizado de maneira ampliada e, no mais das vezes, buscou-se, a partir dele, difundir algumas fórmulas desvinculadas do seu contexto de enunciação. Inevitável que tivesse ocorrido tanto um processo de instrumentalização — no PCI, Gramsci assumiu a figura de um formulador ortodoxo e também a de um precursor do “eurocomunismo” — quanto de diluição e empastelamento do seu pensamento, sendo muitas vezes citado por opositores declarados às suas aspirações políticas de emancipação dos subalternos. Por esses descaminhos, diluiu-se a riqueza do seu pensamento, o que parece estar sendo recuperado, como a sua complexa leitura do nacional a partir de um “cosmopolitismo de novo tipo”3 ou sua aspiração por um “comunismo como sinônimo de igualdade e democracia”.4Olhando essa trajetória de recepção e assimilação, pode-se dizer que Gramsci chegou a um patamar de utilização que passou a exigir um novo tratamento, que desmontasse mitos, simplificações e falsificações, e pudesse resgatar Gramsci como uma obra que se confunde com sua vida, contextualizada nos conflitos e transformações daqueles anos febris que marcaram o alvorecer do século XX.Esse espírito marca uma reviravolta nos estudos gramscinos nas últimas décadas que, em primeiro plano, buscou estabelecer uma leitura filológica dos seus textos com o intuito de dar uma compreensão mais refinada dos seus conceitos em compasso com sua escritura, ou seja, capturando o “ritmo do pensamento”.5 Em paralelo, a partir de uma perspectiva analítica centrada na “historização integral”, foi possível pensar, de maneira articulada e contextualizada historicamente, as vicissitudes da sua trajetória pessoal e da sua reflexão teórica, permitindo que se pudesse compreender melhor os dramas individuais e os dilemas políticos daquele prisioneiro especial do fascismo. Muito desse movimento renovador se alicerçou no trabalho desenvolvido pela Fondazione Gramsci de Roma por meio de pesquisas inovadoras, seminários regulares difundidos em publicações coletivas e iniciativas intelectuais que articulavam o diálogo entre estudiosos e pesquisadores dos escritos de Gramsci ao redor do mundo.6Com o trabalho de pesquisa ensejado na propositura da “Edição nacional” e em função das pesquisas desenvolvidas de identificação e reorganização do que Gramsci escreveu, passou a haver um significativo movimento de reavaliação e revigoramento do seu pensamento. Diversas publicações de estudos sobre sua vida e seu pensamento têm vindo a público, particularmente na Itália — mas não só —, que, além de questionarem diversas formas pelas quais Gramsci havia sido assimilado e utilizado, propõem uma revisão de muitas dessas interpretações e sugerem o que vem sendo chamado de um “novo” Gramsci.De acordo com Gianni Francioni e Francesco Giasi, a ênfase dessa caracterização não está no conteúdo, mas no reconhecimento de que “um novo Gramsci ganha forma graças a um complexo trabalho coletivo que conta com a participação de estudiosos de diferentes gerações, com diferentes formações e perfis, com maturações diversas, no campo dos estudos históricos e filosóficos, unidos por pesquisas específicas e continuadas”.7De imediato, esse reconhecimento sugere um questionamento inevitável à equivocada visão de alguns anos atrás de que Gramsci havia deixado de ser lido e estudado na Itália em detrimento do crescimento da investigação sobre Gramsci por parte de pesquisadores não italianos. Outra ideia que deverá ser questionada em breve é a de se supor que a “Edição nacional”, com seus portentosos volumes — que muito dificilmente serão traduzidos em sua totalidade em outros países —, diminuirá a pesquisa sobre Gramsci ao redor do mundo. Sì e no, efetivamente, essa é uma questão em aberto.Em suma, esse “novo Gramsci” obedece mais ao clima do tempo, mais plural e dialogante, do que aquele do status de referencial predominante de um campo político-ideológico, vinculado a um partido, ou então, o seu inverso, como na fabulação de um “outro Gramsci” que se opõe à imagem que, em particular, o PCI, atribuiu a dele. O século XXI parece demandar uma recepção mais complexa e sofisticada de Gramsci e, nesse sentido, dispensa tanto a fórmula “canônica” de tratamento do nosso autor quanto um relativismo interpretativo inconsequente; e repele, mais ainda, a leitura essencialista, antitética e tresloucada promovida pela extrema-direita, à la Olavo de Carvalho8, que deforma tudo e promove somente ignorância.Esse “novo Gramsci”, muito mais fiel à sua trajetória de vida e à complexidade do seu pensamento, permanece convocando seus leitores e estudiosos a se esforçarem no sentido de contribuírem com a discussão dos dilemas políticos da contemporaneidade, notadamente por meio das temáticas da interdependência e do cosmopolitismo, dois temas caros a ele e vetores essenciais para o enfrentamento dos desafios deste “mundo grande e terrível”… e “complicado”, que ele já divisara no seu tempo, um século atrás. (Estado da Arte/O Estado de S. Paulo - 09/10/2024 - https://estadodaarte.estadao.com.br/filosofia/edicao-nacional-da-forma-a-um-novo-gramsci/)Notas:1. A “edição temática” foi quase integralmente publicada no Brasil na década de 1960 pela editora Civilização Brasileira. A partir de 1999, tendo como editores Carlos Nelson Coutinho, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira, a mesma editora publicaria uma versão dos Cadernos do Cárcere que mescla a “edição temática” com a “edição crítica”. ↩︎ 2. Em maio de 2024, foi lançado Scritti 1918, organizado por Leonardo Rapone e Maria Luisa Righi, o último volume até agora publicado da “Edição nacional”. ↩︎ 3. IZZO, Francesca. Il moderno Principe di Gramsci – cosmopolitismo e Stato nacionale nei Quaderni del carcere. Roma: Carocci, 2021(uma versão em português está no prelo pela Editora da Unicamp & FAP). ↩︎ 4. DESCENDRE, Romain & ZANCARINI, Jean-Claude. L’oeuvre-vie d’Antonio Gramsci. Paris: La Dècouverte, 2023, p. 13. ↩︎ 5. COSPITO, Giuseppe. Il ritmo del pensiero – per una lettura diacronica dei “Quaderni del carcere” di Antonio Gramsci. Napoli:Bibliopolis, 2011. ↩︎ 6. A título ilustrativo podemos mencionar: Giuseppe Vacca, Vida e pensamento de Antonio Gramsci – 1926/1937 (Contraponto/FAP, 2012); Leonardo Rapone, O jovem Gramsci – cinco anos que parecem séculos – 1914-1919 (Contraponto/FAP, 2014); Aberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques & Giuseppe Vacca (orgs), Gramsci no seu tempo (Contaponto/FAP, 2009; 2ª. ed. 2019); Fabio Frosini & Francesco Giasi (orgs), Egemonia e modernità – Gramsci in Italia e nella cultura Internazionale (Viella, 2019). ↩︎ 7. FRANCIONI, F. & GIASI, F. Un nuovo Gramsci – biografia, temi, interpretazioni. Roma: Viella, 2020, p. 12. ↩︎ 8. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Furtado da Silva. “Gramsci no jardim das aflições”. In: Anais do VIII Encontro de pesquisa em história da UFMG. Belo Horizonte: UFMG, 2019. ↩︎

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