No fim do século passado, já tínhamos como prever e, consequentemente, atenuar seus efeitos
No Vale do Jequitinhonha, onde Minas se aproxima do Nordeste, chove pouco. Talvez chova muito menos por causa do El Niño. O El Niño influencia as enchentes no Sul. Ele é assim: faz chover intensamente em alguns lugares e desaparece com a chuva noutros.
O nome El Niño foi dado por pescadores peruanos porque ele surge perto do Natal. É um fenômeno produzido pelo aquecimento diferenciado das águas do Oceano Pacífico. Num momento em que falamos tanto de mudanças climáticas, ele ressalta a importância dos oceanos, que, às vezes, esquecemos, preocupados com as florestas e a ecologia urbana.
No passado, demos mais importância ao El Niño. Em 1997, o Senado fez uma comissão para estudá-lo, e o resultado foi um documento completo, que deveria, creio eu, ser distribuído para as escolas. Naquele momento, no entanto, as coisas não pareciam tão graves, não se falava tanto em aquecimento global. Apenas o El Niño importava. Sua aparição em 1983 causou 170 mortes no sul do continente e prejuízos de US$ 3 milhões.
No fim do século passado, porém, já tínhamos como prever e, consequentemente, atenuar seus efeitos. Já se mediam temperatura e força dos ventos por meio das boias colocadas no Pacífico pela Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA). Tínhamos também o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), que usava um supercomputador SX-3/12R, capaz de realizar 3,2 milhões de operações aritméticas por segundo.
A previsão começava nas boias, passava por uma pesquisa atenta sobre os ventos alísios. Quando esses ventos enfraquecem, as águas superficiais não se deslocam normalmente de leste para oeste. O resultado é que na região do Equador, em Galápagos, a temperatura da superfície sobe, e as águas frias, com muitos nutrientes, são empurradas para grandes profundidades. Essas mudanças são terríveis para a fauna. Pássaros migram por causa das inundações, leões-marinhos são dizimados.
Mas o foco do trabalho do Senado em 1997 eram as repercussões na sociedade. Foram chamados vários setores do governo para que se preparassem com antecedência diante dos reflexos na agricultura, na defesa civil e nos transportes, entre os setores mais importantes.
A chegada do El Niño sempre traz seca no Norte e Nordeste e muitas chuvas no Sul — é o lugar-comum. Mas o enlace entre o trabalho científico e o planejamento político não se consolidou. Recentemente, tivemos Bolsonaro, que, por razões ideológicas, hostilizava a ciência. A verdade é que, entre a tosca hostilidade à ciência e seu uso inteligente na arte de governar, existem muitas gradações.
O trabalho de 1997 oferecia sugestões de ações permanentes e emergenciais. Não são novidades quando discutimos o impacto das chuvas e sempre falamos na delimitação de áreas de risco e em obras de contenção. No campo emergencial, o fortalecimento da defesa civil e a mobilização da população aparecem com destaque.
Como mencionei, tudo isso foi elaborado antes da tomada de consciência mais aguda do aquecimento global. Hoje, deveria se transformar num projeto nacional de adaptação não apenas ao El Niño, mas às mudanças climáticas. Na época, o relatório incluía também um tópico sobre a defesa civil em Blumenau, cidade castigada pelas chuvas.
O aprendizado se faz por meio de tragédias. Creio que já vivemos muitas. O momento é adequado para planejamento, e há chances de financiamento internacional no quadro da emergência climática.
O Senado já não é mais o mesmo. Quando vejo o leque de comissões especiais, sinto que estão muito centradas em escândalos políticos e econômicos. A dificuldade é convencer os parlamentares a realizar um trabalho que não atrai refletores e possivelmente seja até meio aborrecido para o homem comum. No entanto o El Niño e o próprio aquecimento global são escandalosos se os ignoramos. (O Globo – 11/09/2023)
Fernando Gabeira, jornalista e escritor