É profundamente desolador o quadro apresentado pela aprovação da PEC Kamikaze
A armadilha política da aprovação da PEC Kamikaze fechou-se como se previa: o conjunto das forças políticas suporta a compra de votos disfarçada de medida de emergência. Esse agrado oportunista ao eleitor é a essência da atividade de partidos de baixa representatividade, sem lideranças de expressão genuína, voltados para a defesa de interesses privados, regionais, corporativistas ou segmentados.
“Armadilha”, pois votar contra em nome de princípios significava ficar mal com o eleitor. Votar a favor era prestar ajuda a Bolsonaro, ainda que os dividendos eleitorais da PEC sejam duvidosos. Entre princípios e caridade, mesmo a oposição séria e genuína a Bolsonaro se agarrou a uma frase: “É a miséria, estúpido”.
É uma constatação indiscutível, e profundamente perturbadora. Durante a vigência do auxílio emergencial o Brasil teve significativa mudança de patamar de renda. De lá para cá a situação só piorou. “Eu discutia como votaria no caso da PEC, mas aí parei num sinal de trânsito, dei R$ 20 para uma família ali acampada e ouvi deles como esses R$ 20 eram tão decisivos para as crianças deles, aí votei a favor”, disse um senador da velha-guarda política, e ferrenho opositor do governo.
Combate à desigualdade é frase de uso político desvinculada de um consenso nas elites dirigentes sobre a necessidade de se diminuir miséria, doença e ignorância. Não se trata de uma “maldade” pensada pelas “classes dominantes”, como pretende o submarxismo que domina boa parte do ensino superior. Trata-se de uma “sociedade invertebrada” que não percebe quanto é refém da miséria que se mostra incapaz de eliminar.
É bastante óbvio que a “sensibilidade social” de dirigentes políticos se torna mais aguda na época de pedir votos, o que não é uma peculiaridade brasileira. No fundo, a aprovação da PEC traduz um cenário abrangente muito mais preocupante do que a indisciplina fiscal, o desrespeito claro à institucionalidade (muda-se a Constituição ao sabor do momento político imediato) e a burla às normas eleitorais.
Em termos sociais, o “estado de emergência” com a qual se justificam as bondades eleitoreiras é o de um país que voltou ao mapa da fome, enquanto se gaba de ser campeão mundial de produção de alimentos. Não importa a denominação política do governante de plantão, discutem-se, no fundo, as mesmas mazelas de sempre. Pode-se dizer que não há sistema político que funcione quando, na base, o que persiste é doença, miséria e ignorância.
Nesse sentido, “emergência” é nosso estado permanente. (O Estado de S. Paulo – 14/07/2022)
William Waack, jornalista e apresentador do programa WW, da CNNN