A guerra na Ucrânia aponta para o fim de uma era. Fukuyama afirmou que ela representa “o fim do fim da história”, o ocaso de um certo consenso liberal global que organizou o mundo ocidental do pós-Guerra. Mas aqui quero me restringir a algumas de suas implicações políticas no plano interno das democracias.
Começo por seu impacto sobre a onda populista.
O traço distintivo do populismo, em suas variantes à esquerda e à direita, é o apelo ao povo (virtuoso) —em oposição às elites (corrompidas)— e na representação política direta sem mediações ou controles institucionais. O nativismo é corolário: povo e nação se complementam.
O populismo rejeita tudo o que limita a expressão da vontade popular —instituições de controle latu senso; separação de Poderes; instituições judiciais— e todos os que atuam entre o povo e os governos: partidos, políticos profissionais, instituições internacionais. No contexto europeu, a crítica populista mirou o déficit democrático presente na governança multinível, supostamente ineficaz, impotente e incapaz de coordenação.
A guerra, no entanto, deflagrou uma reação robusta que exibe inédito e surpreendente grau de coordenação em vários planos: doméstico, regional e internacional. A União Europeia fortaleceu-se brutalmente; a ação concertada de instituições “decadentes” como ONU e Otan foi igualmente notável; os acordos e tratados internacionais foram revalorizados.
A guerra criou —e isso é crucial— uma narrativa hegemônica de rejeição à tirania. O consenso em torno das instituições da democracia representativa deu lugar a um mantra: somos todos democráticos. A crítica iliberal retraiu. Os valores que estão em jogo agora são o núcleo duro, secular, do constitucionalismo liberal: tolerância, liberdades, direitos fundamentais. O apelo do tribalismo identitário empalidece face ao universalismo de valores: a o que temos em comum, e não o que nos separa.
A guerra minou a crítica à imigração, peça central na narrativa populista e responsável por fraturas em muitos partidos tradicionais. Cultura e religião comuns, além de proximidade geográfica em relação à Ucrânia, explicam parte da mudança atitudinal, mas a chave em que o tema é tratado mudou radicalmente.
O caso de Zemmour, candidato presidencial na França, é ilustrativo: teve que pedir desculpas e renegar seu discurso contra a “imigração, inclusive de ucranianos”. O governo do PIS na Polônia, que havia se tornado pária no âmbito europeu, beneficia-se do internacionalismo que combatia, e é peça chave na coalizão internacional.
O efeito de união contra a ameaça comum (rally round the flag ) desta vez parece não ser de curta duração. (Folha de S. Paulo – 14/03/2022)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)