Às vésperas de completar o segundo século como nação independente, em setembro de 2022, o Brasil revive o brado daqueles anos longínquos do século XIX: “Às armas, cidadãos! É tempo. Às armas…” (CARVALHO, BASTOS, BASILE, 2012). A diferença é que, hoje, não se trata de libertar os nacionais dos desígnios que lhe são impostos por um outro, estrangeiro, situado além-mar. O que se quer é promover, pelo uso da força, uma ruptura com a própria história de constituição da cidadania brasileira e reviver um passado idealizado.
A retrotopia (BAUMAN, 2017) que anima os ressentidos é manipulada por espertalhões que fazem do governo o instrumento para a imposição do domínio de um grupo. Para este, os ideais independentistas constituem bravata, pois o que se almeja é a vida de cortesão, na qual o Estado deve servir à camada dominante, ao seu desfrute exclusivo. O povo, de verde e amarelo e gesto de arma com o indicador e o polegar, embarcou numa jornada de otários, enquanto o peculato praticado por vereadores e deputados obscuros ganhou a dimensão de negócio federal.
É triste observar que há similitude entre os valentes de hoje e os parasitas da colônia empobrecida de 1800. Naquela época, por ocasião da transmigração da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, fugida da ameaça napoleônica, denunciava o jornalista Hipólito José da Costa que muitos comiam à custa do Estado e nada faziam para o bem do povo (FAORO, 1989). Hoje, igualmente, o grupo no poder amplia a sua base de sustentação e sobrevivência política ao custo do orçamento da União, numa transação nada republicana e, portanto, nem um pouco programática com o chamado Centrão. Enquanto isso, a fome assola os lares brasileiros.
E é exatamente a imprensa profissional que incomoda o grupo governante. No período da independência política, outra era a noção de público e outros os meios para divulgar a informação. Os panfletos circulavam conjurando à revolta. Hoje, o grupo no poder se vale dos novos meios de comunicação eletrônica, das redes sociais, para semear o caos e a desinformação. Sua arma é a mentira sistemática e o apelo emocional, para o que conta com aliados poderosos travestidos de guias espirituais em púlpitos físicos e virtuais.
Numa sociedade como a brasileira, carente de reformas estruturais para enfrentar os desafios do capitalismo financeiro e globalizado, a pauta modernizadora oferecida pelo douto da fazenda nada mais é do que um pacote de volta ao passado. Um certo tipo de convencionalismo mercantil sob retórica ultraliberal. Concessões e privilégios para quem enxerga a terra como uma conquista a usufruir e o povo como um insumo elástico, portanto, de custo baixo.
Neste mundo de coisas tortas, no qual o passado insiste em retornar, o Sete de Setembro de 2021, antecessor do bicentenário, simboliza a agonia de uma estrutura que, mascarada, sobreviveu aos séculos. O presidente, seus ministros e sua base de apoio são a face atual de um fenômeno que desgraça a sociedade política e pode levar, mais uma vez, à violência nas ruas. O velho patrimonialismo, renovado no discurso, continua a arruinar a nação e a corroer a democracia. Pela direita e pela esquerda, as conquistas de 1988 quedam-se ameaçadas.
A soberania popular não estará em medição nas ruas nesta terça-feira, como grita o desvairado do Planalto. O seu fundamento está impresso no texto constitucional e a sua defesa depende dos homens e da operação das instituições da República. Todo o resto é aventura e conduz ao despotismo e às autocracias que inundam o cemitério da história. (Blog Horizontes Democráticos)
Rogério Baptistini
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. 1ª ed.. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2017.
CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILE, Marcello (orgs.). Às armas, cidadãos! — Panfletos manuscritos da independência do Brasil (1820-1823). 1a ed.. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte : Editora UFMG, 2012.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 volumes. 8ª ed.. São Paulo: Ed. Globo, 1989.