Ilona Szabó de Carvalho: Em meio à exaustão, o ânimo de dizer basta

Seguiremos construindo pontes e plantando as sementes da reconstrução que germinarão quando esse pesadelo acabar

Estou exausta. Muitos estão. O Brasil do bolsonarismo exaure e faz definhar os vivos, enquanto enterra às pressas, sem remorso, condolências e direito ao luto, centenas de milhares de mortos. Os dias estão infestados de tragédias, crimes desumanos, negligências atrozes e avanços autoritários. Dor, fome, violência, corrupção e medo se espalham deliberadamente, assim como a pandemia, Brasil afora. O cenário deixa difícil até mesmo escolher um assunto único para esta coluna.

Não poderia deixar de falar sobre o massacre no Jacarezinho, e sobre a tentativa, até o momento bem-sucedida, da extrema direita de estabelecer a narrativa da falsa dicotomia entre o enfrentamento ao crime e o respeito às leis e aos direitos humanos. Fica a dura lição do resultado da falsa polarização entre saúde e economia na pandemia. Pesquisa do Ipea mostra que morreu mais gente no Brasil do que em cerca de 90% dos países do mundo e que perdemos mais empregos do que 84% deles. O discurso de demonização dos direitos humanos, antes marginal, ganhou o centro do poder e faz com que as velhas práticas nefastas por ele embasadas fiquem ainda mais letais. Os dados sobre violência policial no Rio estão aí para confirmar.

Tampouco poderia deixar de mencionar que, enquanto batalhávamos por melhorias no substitutivo do projeto de lei 2.462 de 1991que revoga a famigerada Lei de Segurança Nacional, na Câmara dos Deputados, na mesma casa, à toque de caixa, foi aprovada mudança no regimento interno que pode restringir a atuação da oposição e de partidos menores. Maus presságios do avanço autoritário galopante, que poucos dias antes, por somente um voto não conseguiu (por hora) aprovar na Comissão de Constituição e Justiça um projeto que facilitava o impeachment de ministros do STF. E para completar, o colunista desta Folha Conrado Hübner Mendes sofreu grave retaliação do Procurador Geral da República, por exercer sua liberdade de expressão. Já vivemos tempos de exceção.

E como não chorar ao ler a notícia de que o ataque criminoso e desumano de garimpeiros aos povos indígenas yanomami, levou à morte duas crianças, de um e de cinco anos? Elas se esconderam na floresta para escapar do atentado e foram encontradas afogadas. Nó na garganta e no estômago só de imaginar o que nossos povos originários estão passando. Há muitos cúmplices e coniventes. Ludibriados por recursos extras do esquema que ficou conhecido como “tratoraço” e afins, e com ganância desmedida, a maioria dos deputados federais votaram –sem vergonha alguma de assassinar as florestas, os povos indígenas e o nosso futuro– pela aprovação de um projeto de lei que enfraquece sobremaneira o licenciamento ambiental no Brasil. Assim, a potência verde não realizada perde mais uma vez o trem da história.

A essas e tantas outras tragédias se somaram ainda a tristeza e o vazio deixados por mortes de brasileiros conectados com nosso povo. E isso é ainda mais duro nos dias atuais. Pessoas admiradas pela sua arte e pelo seu caráter. Paulo Gustavo, Eva Wilma, Bruno Covas, Carlito Carvalhosa se foram, ampliando a já imensurável dimensão do luto em nosso país. Batalhavam contra distintos males, mas me atrevo a dizer que eles também deveriam estar exaustos do Brasil de Bolsonaro.

Longe de esgotar a lista de trágicos assuntos, fico por aqui atenta às próximas más notícias. Querem que a gente jogue a toalha. Mas não, isso não conseguirão. Sim, estamos exaustos, mas seguiremos construindo pontes e plantando as sementes da reconstrução que germinarão quando esse pesadelo acabar. Há de ser rápido. A destruição e sofrimento precisam ser estancados já. Quem sabe a CPI da Covid não cumpre essa nobre missão? Ainda temos força para nos indignar. E, por isso, o ânimo de dizer: basta. Precisamos nos salvar. (Folha de S. Paulo – 19/05/2021)

Ilona Szabó de Carvalho, empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”

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