O protagonismo indesejado e suas consequências não intencionais
O jogo da responsabilização política na pandemia foi marcado pela recusa deliberada de protagonismo presidencial: ela foi encarada como questão “radioativa”. Bolsonaro ativamente perseguiu uma estratégia de não envolvimento direto com a crise sanitária, buscando transferir a governadores e prefeitos a culpa pelo colapso das unidades de saúde, a escalada de óbitos e os lockdowns.
Buscava-se protagonismo apenas nas ações positivas que poderiam trazer dividendos políticos, como o auxílio emergencial e linhas de crédito.
Esse padrão caracterizou a ação do governo em relação a questões tóxicas, como a reforma da Previdência. Aqui havia um modelo a ser emulado no conteúdo e na forma: o governo Trump, que fez pouco caso da Covid após ser informado da tragédia em curso, ao tempo em que implementava um pacote de US$ 2,8 trilhões. “Quero minimizar a pandemia porque não quero criar pânico”, confessou a Bob Woodward.
São várias as razões que explicam o fracasso. O federalismo nos dois países são radicalmente diferentes. Os EUA não têm um sistema público nacional de saúde vertebrado pelo governo federal. Aqui, a estratégia de deslocar a culpa não funcionou: o não protagonismo foi entendido pela sociedade como irresponsabilidade e falta de empatia e liderança.
Como nos EUA, o estilo agressivo, chulo e debochado do chefe de governo em um contexto de calamidade pública e intenso sofrimento coletivo potencializou os problemas. A decisão do STF reafirmando as responsabilidades subnacionais forneceu uma justificativa para a omissão federal, mas não conteve os danos.
A segunda onda magnificou a percepção de irresponsabilidade federal que havia sido arrefecida em virtude do auxílio emergencial. O horror sanitário em Manaus chamou a atenção para as consequências trágicas da omissão federal no contexto de baixa capacidade institucional local. Até então, Pazuello cumpria o papel de “não ministro” ou de “antiministro”. Não ser da área médica virou um ônus.
Trump apostou nas vacinas através da operação Warp Speed (US$ 10 bi), sem paralelo aqui no país. O protagonismo fracassado em relação à vacina encontrou um rival na figura de João Dória, e a disputa tem levado o presidente a protagonizar disparates em relação à vacina e à China, autossabotando a estratégia perseguida de associar-se a ações positivas. A omissão federal produziu custos políticos —escancarados pela CPI— que ameaçam o protagonismo na vacinação.
Trump foi destronado nas urnas antes de obter o crédito político pela vacina, mas sua estratégia de deslocar a culpa teve alguma eficácia; Bolsonaro poderá sê-lo mesmo que a vacinação seja bem-sucedida. (Folha de S. Paulo – 10/05/2021)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)