Estratégia federal de associar-se a fatores positivos como auxílio e vacina fracassou frente à crise
A dinâmica política da pandemia sofreu inflexão importante. A emergência sanitária irrompeu no segundo ano do governo e moveu as placas tectônicas da política, afetando tanto seu conteúdo substantivo (a agenda) quanto a forma (estilo de governança). A agenda tornou-se monotemática: como impedir que uma crise social desestabilizadora que poderia levar à queda do governo se instalasse?. Mas a mudança na forma demorou: foi a persistência da cacofonia midiática que produziu a inflexão.
A estratégia do governo foi associar-se a fatores positivos que produzam benefícios tangíveis; em um primeiro momento, ao auxílio emergencial; em um segundo, e que está em curso, à vacinação em massa. Medidas restritivas como lockdowns que produzem custos concentrados e benefícios difusos deveriam ficar a cargo de governadores e prefeitos, que também arcariam com os elevados custos políticos de gestão dos serviços de atenção à saúde em meio a uma emergência.
A disputa federativa envolve a distribuição dos custos e benefícios pela pandemia. É disputa sobre crédito e responsabilidade política.
A pedra no sapato foi Doria por suas iniciativas na área da vacina, o que deflagrou respostas bizarras na forma de críticas à “vacina chinesa” e quejandos. A aposta do governo —a vacina da AstraZeneca, negociada em julho— sofreu atrasos e o governo perdeu o timing; tenta, no momento, recuperar o tempo perdido em um quadro de profundo desgaste político.
Com a federalização da política da vacina —e tendo em vista a expertise do país— defendi, em dezembro, que Bolsonaro levaria o crédito político. Mas ainda não estava configurada uma segunda onda, avassaladora, que tem tido impacto desestabilizador.
A nomeação do novo ministro se insere no processo de abandono paulatino do estilo adversarial do governo a partir de abril de 2020, quando tiveram lugar a aproximação com o centrão e as derrotas do Bolsonarismo-raiz no enfrentamento com o STF. Centrão e “bolsonarismo-raiz” são substitutos, não complementos.
O auxílio emergencial e o escudo legislativo proporcionado pela formação de uma base parlamentar garantiram a travessia do deserto. O desafio agora é de outra ordem de grandeza.
A crescente impopularidade presidencial aponta para um equilíbrio tipping point (ponto de inflexão) deste arranjo. Sua melhor sinalização foi o pedido de demissão do “chanceler-raiz” pelo líder do centrão e o cartão amarelo que sacou para o governo.
Um sinal de que Bolsonaro poderá não ser reeleito deflagrará um efeito manada na sua nova base. Mas como já se disse em relação à Argentina: em nosso país nenhum evento tem probabilidade zero. (Folha de S. Paulo – 29/03/2021)
Marcus André Melo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)