A capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment
As lideranças políticas estão a cinco dias da rendição ao presidente Jair Bolsonaro, o que se consumará ao elegerem o novo comando do Poder Legislativo. A confirmarem-se as prévias, estarão os parlamentares promovendo sua incorporação às vilanias do governo. Tiremos desta grave onda de cumplicidade o Senado, onde a extremada independência de cada um supera qualquer imposição de compromissos da cúpula.
Na Câmara, porém, é outra a essência do poder. As indicações de insidiosa conspiração parlamentar fazem o favoritismo do candidato Arthur Lira, patrocinado por Bolsonaro com todas as garantias de sucesso. Inclusive os habituais objetos da feira de trocas de favores, avançando pela coação em casos de resistência.
À população, traída, resta levantar as mãos ao alto enquanto alimenta a esperança de reversão do golpe legislativo, pela traição. Embora o momento exija coragem e não esta covardia marota, os deputados, em maioria, estão levando na displicência esta grave iminência de desastre político.
Como se fosse natural, os brasileiros amanhecem o dia temendo a morte, que já levou 220 mil cidadãos por idiossincrasias, crendices e incompetência do governo. Têm crescido os protestos de rua e manifestos propondo o impedimento do presidente. Crimes de responsabilidade foram cometidos, sobretudo na gestão da crise sanitária mundial. O País tinha, até agora, no Judiciário e no Legislativo, sua fresta de oxigênio.
Mas a Câmara parece disposta a sujeitar-se e debandar. Sem ter consciência de que está prestes, inclusive, a referendar o projeto de reeleição de Jair Bolsonaro para continuar o desgoverno que vem liderando.
A capitulação da Câmara significa muito mais do que engavetar o impeachment. O compromisso inclui a aprovação de políticas contrárias aos interesses da população.
O candidato favorito fala a linguagem do presidente. Fugiu do debate alegando que a pandemia é assunto demagógico. Se ainda houvesse dúvida sobre tão estreita afinidade, está sobre a mesa, já compromissado, o aumento de impostos, com a aprovação da mal afamada CPMF.
Negacionista desumano, para quem vida e morte são a mesma coisa, Bolsonaro escolheu para exercer o controle da Câmara, em seu nome, alguém ardorosamente com ele identificado. O faroeste não é um modelo de projeto parlamentar, entretanto será o único possível com a direção da Câmara subjugada pelo presidente da República.
Bolsonaro perdeu Donald Trump, cujo exemplo copiava e se esgotou como modelo. Está isolado politicamente e escolheu para o Brasil a posição de pária. Seu governo é fraco, sem maioria, investigado em inquéritos judiciais variados. Contudo, supera estas desvantagens com um arsenal de guerra que construiu para resguardar sua cidadela.
Registros de uma breve memória: já reuniu a proteção do procurador-geral da República; duas vagas no STF; duas vagas no TSE por onde tramitará sua denúncia de fraude no sistema eleitoral; a cooptação das polícias militares, que deseja agregar oficialmente ao portfólio de poder; boa parte da Polícia Federal; o apoio das tropas armadas, que cultiva como se líder sindical ainda fosse; acesso às violentas seitas da conspiração; a fidelidade de extremistas e milícias, sob o comando do gabinete do ódio e de empresários do círculo íntimo.
São itens especiais: o culto às armas de fogo, que segue em velocidade e disseminação preocupantes; e a produção de uma rede de filhos e amigos dispostos a cometer o que for preciso para autenticar seu método.
A rendição irrestrita da presidência da Câmara é armação política de um pacto que tornará o Executivo e o Legislativo um só bloco, indiferente à dor, ao luto e à indignação do povo. (O Estado de S. Paulo – 27/01/2021)
ROSÂNGELA BITTAR, COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS