Não há o que temer ao despachar figuras nefastas como Trump e Bolsonaro
Às vezes, é preciso escrever com simplicidade, sem o rigor das páginas editoriais ou a complexidade das teses dos cientistas políticos. Escrever apenas isto: há um homem sentado sobre o destino do Brasil, e suas pesadas e incômodas nádegas não permitem avanço e provocam mortes.
Nem sempre é fácil se livrar desse fardo. Nos Estados Unidos, finalmente, Trump será despachado, como um desses espíritos que se recusam a desencarnar.
Muitos viram na invasão do Capitólio apenas um problema para Biden. Não perceberam que se viviam ali os estertores de uma época, num dia cheio de boas-novas, como as eleições na Geórgia, que garantem aos democratas a maioria no Senado.
Manifestações às vezes enganam. Já participei de centenas na vida. Nem todas sobrevivem na balança da história. Sua fumaça confunde o que sobe e desce, o que nasce e morre no instante.
Não há o que temer no processo de despachar essas figuras nefastas, desde que, é claro, se façam previsões corretas e preparações adequadas.
Quando o coronavírus era uma realidade apenas em Wuhan, escrevi um artigo sobre ele. Previ que, em caso de chegada ao Brasil, a única resposta teria de ser nacional e solidária.
Bolsonaro sabotou essa resposta. Como se não bastasse, demitiu os ministros da Saúde que a aceitavam. Fomos reduzidos a reações atomizadas que, embora fiéis à orientação científica, não têm a mesma eficácia de uma coordenação central.
Ultrapassamos os 200 mil mortes. Não podemos dizer que Bolsonaro seja responsável por todas. Mas algumas, várias delas, devem-se a sua escolha e já bastariam para pesar eternamente na consciência de um homem do bem.
Desde o princípio da pandemia, a vacina apareceu como única saída estratégica, e o mundo científico se dedicou a ela. Bolsonaro preferiu remédios e desconfiou abertamente da vacina, inibindo uma planificação. O atraso que isso significa representa vidas perdidas e energia produtiva paralisada.
Bolsonaro diz que o país está quebrado e ele não pode fazer nada.
Há trilhões de dólares no mundo, de fundos de pensão, bancos, governos, prontos para ser investidos em projetos ambientais e socialmente responsáveis.
Mas todo esse dinheiro não pode vir para cá. Bolsonaro estimula a destruição das florestas e dos bichos com uma política do século passado. Ele e alguns apoiadores acham que americanos e europeus destruíram seu meio ambiente, agora é hora de destruir o nosso: dane-se.
Muitos políticos recusam o impeachment porque acham que podem fortalecer a quem se quer derrubar. Não foi assim nos EUA. Trump sobreviveu ao processo, mas acabou perdendo as eleições.
O problema agora é a existência da pandemia. Se Bolsonaro estivesse sentado apenas sobre o progresso econômico, o nível de gravidade seria menor.
No momento, estamos lutando desesperadamente para salvar vidas, num contexto social em que a fome ronda milhões.
Definido como o grande obstáculo, um homem sentado sobre o destino do país, a resposta simples seria removê-lo. Mas as circunstâncias exigem um esforço combinado, de tal forma que a luta pela vida seja também um passo para afastá-lo. Os dois fatores estão entrelaçados.
Um movimento pela vacina universal e gratuita não pode perder de vista a substância que imuniza, nem o responsável pela sua inexistência a esta altura da pandemia.
Estão dadas as condições para uma ampla articulação para salvar o país da morte. Assim como, guardadas as proporções, quando o Reino Unido se viu diante da ameaça de uma invasão hitlerista, todos os esforços do país convergiram num só sentido de proteção à ilha.
Escrevi: guardadas as proporções.
Muitos brasileiros acham que o país está no caminho certo, e não há o que defender. Nada como o bom debate numa atmosfera democrática. Muitos americanos achavam que Trump era o caminho.
No entanto lá se foi o Trump para o espaço sideral, amplo e aberto para receber terráqueos como ele.
Com trabalho e tolerância, poderemos construir nossa nave e também lançar aos ares o pesado corpo sentado sobre nosso destino. (O Globo – 11/01/2021)