Andei levando pancadas na rede. São os mesmos de sempre como dizia o personagem de “Esperando Godot”.
Durante muitos anos, quase que solitariamente apontei os erros que poderiam nos conduzir ao desastre.
A ausência de autocrítica os leva a buscar, compulsivamente, culpados, como se eu fosse responsável por Bolsonaro e não os seus erros cometidos aos longo dos anos. Aliás, já os enfrentei em eleições como aliados de Sérgio Cabral.
Jamais votaria num Bolsonaro, conheço-o bem. Ao longo dos anos, mantive-me fiel a Marina Silva, no passado, vítima de impiedosa campanha do PT.
Apenas afirmei, assim que eleito, esperar que as instituições brasileiras triunfassem sobre Bolsonaro. A pandemia não estava nos cálculos, e sim o golpe de estado.
Quando senti a ameaça próxima de golpe, a denunciei e dispus-me a lutar contra, como se fosse a última luta de minha vida.
As pancadas me ensinam o avesso da lição. Elas me aconselham abertura para quem confiava resiliência democrática, para quem combateu Bolsonaro de forma ineficaz, para quem se absteve, votou em branco e até os que o elegeram e recuam horrorizados, diante do resultado de sua escolha.
É um caminho mais produtivo do que distribuir culpas.
Num grupo que discutiu o livro “O discurso da estupidez”, de Mauro Mendes Dias, recebi esta mensagem:
— Reflexão muito bem-vinda. Quanto mais pessoas puderem reconhecer a necessidade de mudar de posição, já estamos avançando. Um dos efeitos do discurso da estupidez é, exatamente, o de não poder mudar, seja pela devoção a crenças deformantes da realidade, seja devido ao gosto que ele suscita pela destruição do patrimônio de valores que nos tornam humanos.”
Nos tempos de internet, sempre haverá esses ataques maciços. É uma cultura: basta tirar uma frase do contexto. O importante é olhar para frente, sem raiva.
Diante de nós surge a esperança da vacina. O Brasil tem um bom sistema de imunização, dois centros de excelência para fabricá-la: Instituto Butantan e Fundação Oswaldo Cruz.
Mas há um grande obstáculo: o próprio Bolsonaro. Sua tática de sabotar a vacina é espalhar mitos como o perigo de a pessoa virar jacaré.
Além de cobrar a eficácia do processo, será necessária uma batalha pelas mentes e corações.
O que dirá se avançamos ou não em 2021 é a coexistência de duas variáveis: o aumento no número de pessoas vacinadas e decréscimo nas contaminações.
Um outro front onde será preciso unidade: a eleição na Câmara, de um modo geral, distante, intangível.
Naturalmente é uma escolha interna dos deputados, mas desta vez significa muito. Se Bolsonaro conseguir capturar a Câmara e eleger seu candidato, não precisará responder pelas acusações acumuladas, muito menos pelas que pode suscitar no futuro.
Daí a importância de se apoiar a Frente Democrática formada para eleger um candidato independente do governo.
Ela é um instrumento de maturidade política na qual desaparecem, ainda que momentaneamente, todos os ressentimentos. Abre caminho para experiências mais amplas de unidade, que podem ser decisivas para acabar com o pesadelo.
Constituída por diversas correntes de um só partido, esta unidade foi criada nos Estados Unidos e teve êxito na tarefa de evitar a reeleição de Trump.
O interessante é que ao passar por uma experiência quase tão devastadora como estamos passando no Brasil, foi possível mobilizar a partir de um tema que parece abstrato e etéreo: a reconquista da alma do país. Para Biden, a alma representa os valores e instituições americanos.
Os países têm alma e ela pode ser reconquistada? É algo que daria uma longa discussão. Muitas pessoas que viram o show do Caetano Veloso, por exemplo, sentiram-se de volta ao seu país perdido. Outras manifestações artísticas podem ter o mesmo efeito num Brasil tão diverso. É apenas uma pista.
A outra, se me permitem a rápida menção ao período de festas, é que já fomos mais fraternos, apesar das divergências. No tempo da luta pelas diretas, por exemplo.
O que se perdeu com a política pode ser reconquistado através dela. Pelo menos, são os meus votos. (O Globo – 28/12/2020)