Subsídios a grupos consumiram 21,37% da receita em 2019
O país se aproxima de mais uma tragédia anunciada – o fim do pagamento do auxílio emergencial – e o que mais se ouve em Brasília é que faltam recursos para bancar a despesa. Diante da pandemia, cujo número de casos e mortes voltou a crescer, trata-se de viabilizar ajuda humanitária a pelo menos 23 milhões de pessoas que, daqui a duas semanas, não terão mais direito a receber um centavo do governo federal.
O governo federal, com a ajuda do Congresso Nacional, reagiu rapidamente à primeira onda da pandemia. O Banco Central foi célere na garantia de liquidez para o sistema financeiro e as grandes empresas. Já centenas de milhares de pequenas e médias firmas sucumbiram, principalmente no setor de serviços, porque a ajuda – modesta – demorou a chegar e beneficiou a poucos. Dentro e fora do governo isso foi visto – e defendido – como algo inevitável.
Na economia informal, onde atua cerca de metade da força de trabalho do país, a ajuda poderia ter evitado o que se vê neste momento nos grandes centros urbanos: o aumento exponencial dos moradores de rua, cidadãos que se afastam de suas família por vergonha (de não ter emprego) e que não depositam mais nenhuma esperança na própria vida nem no país onde nasceram. Chegar até os informais teria sido muito mais fácil se o Ministério da Economia tivesse acolhido proposta do BC de alcançar esse público por meio das empresas de maquininha.
Trabalhadores que atuam na informalidade correm enorme de risco de mergulhar na miséria absoluta quando sobrevêm crises como a atual. Eles se tornam vulneráveis de forma muito rápida, justamente, por não gozarem dos benefícios assegurados aos trabalhadores regidos pela CLT. A pandemia paralisou subitamente o comércio em geral e colocou nas ruas milhões de pessoas. Estas sequer conhecem seus direitos porque, em geral, morrem antes de completar 65 anos, idade que assegura a brasileiros em situação de indigência requerer do Estado um salário mínimo mensal por meio do programa Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Os cidadãos que fazem das ruas sua morada em momentos como este são, aos olhos não das leis mas sim dos governantes, os invisíveis. Em São Paulo, os moradores de rua fazem parte da paisagem, para a maioria dos transeuntes, como se isso fosse obrigatório, uma espécie de lei da natureza que escolhe os mais fortes entre nós e almadiçoa os fracos, uma predestinação “social” de seres que, por “livre arbítrio”, optaram por não estudar e, por essa razão, merecem estar ali, mais vulneráveis do qualquer um de nós à ação implacável do tempo e à violência que campeia nos grandes centros urbanos.
O titular desta coluna conversou com um mendigo que, empurrando uma carroça e acompanhado obedientemente por nove cachorros (a maioria, abandonada à própria sorte nas ruas, como seu “dono”), esperava na porta de uma restaurante caixas de papelão que asseguravam parte de seu sustento. Ele contou que seu destino mudou radicalmente após o advento do Plano Collor, em 1990. A indústria onde trabalhava, fabricante de tintas, não sobreviveu à recessão provocada pelo confisco.
Desempregado aos 26 anos, o rapaz, originário de Minas Gerais, tentou se recolocar no mercado de trabalho nos quatro anos seguintes. O que mais ouviu foi que não havia vagas e que ele já estava “velho” para ser contratado. Em 1994, o ano de lançamento do Plano Real, ele desistiu de procurar emprego e de morar de favor na casa de amigos e conhecidos. Tornou-se, então, habitante das ruas da então 3ª metrópole do mundo. Não deu mais notícia à família, afastou-se dos amigos, porque, para ele e a maioria dos trabalhadores, vergonhoso não é ganhar pouco, mas, não trabalhar.
Indagado sobre a existência do BPC, que a esta altura de sua vida poderia ser um alento para a sua sobrevivência, nosso entrevistado disse que nunca ouvira falar, duvidou de “tamanha bondade” do governo, mas, antes de assoviar para os cachorros e bater em retirada, fez uma pergunta: “Doutor, é preciso ter quantos anos para ganhar esse BP, como é que é mesmo, BPC?”. “Sessenta e cinco.” “Ah, doutor, eu tenho só 57”, disse gargalhando o homem, cuja aparência remetia facilmemente a alguém com mais de 70 anos.
O auxílio emergencial destinado aos brasileiros em situação mais vulnerável nesta pandemia foi instituído em pouco tempo, embora caiba aqui observação: ao escolher o público do programa Bolsa Família (BF) _ cerca de 44 milhões de pessoas _ como o mais elegível, governo e parlamento agiram com um olhar mais na política do que no bem-estar da maioria. Os beneficiários do BF já recebiam seus pagamentos, ainda que a um valor (R$ 150 em média por pessoa) que realmente precisava ser reajustado.
O auxílio foi definido em R$ 600 para o período entre abril e agosto, e de R$ 300 de setembro a dezembro. Além do público do BF, outras 23 milhões de pessoas teriam acessado o auxílio. A partir de janeiro, o pessoal do BF volta a receber R$ 150 e os outros, nada.
Falta dinheiro? Leitor, quando lhe disserem isso, olhe os números do orçamento de perto. O que se vê é que, apenas no ano passado, a União deixou de arrecadar R$ 308 bilhões e, em 2020, R$ 320 bilhões em tributos e impostos federais (ver gráfico). Esta fortuna foi apropriada pelos grupos de interesse específico mais bem representados em Brasília, entre eles, a indústria automobilística, os grandes grupos privados de educação e saúde e as classes média e alta. (Valor Econômico – 17/12/2020)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br