Os anos de raiva e polarização nos fizeram perder o rumo
A semana foi dominada pelas análises das eleições. Não sou analista política, sigo os entendidos. Dizem que as urnas mandaram muitas mensagens, entre elas, que a democracia saiu mais forte e que o eleitor rejeitou os extremos. Bolsonaro e PT teriam sido os grandes derrotados, levando junto a radicalização. Foi celebrado o nível dos debates e o caminho do centro.
São Paulo parece estar influenciando as conclusões. Covas e Boulos lembraram que é possível discordar sem agredir. O oponente deixa de ser o inimigo e volta a ser apenas um adversário político. Foi bonito de se ver. Mas os debates pelo País afora não me convenceram muito que uma nova ordem se estabeleceu. De Recife, onde uma família se desfez, ao Rio, onde as mentiras e agressões dominaram, as campanhas não foram tão elegantes. Nas redes, a militância continua agressiva. A tolerância com ideias divergentes está ainda perto de zero. Ataques racistas a vereadoras e vereadores negros e piadas misóginas também não faltaram.
Outra razão para otimismo seria a derrota pessoal de Bolsonaro. A preocupação com a segurança pública das eleições de 2018 cedeu lugar à preocupação com a saúde. Tratar a crise da covid-19 como gripezinha pagou seu preço.
Não estou convencida disso. Afinal, o Centrão, base do governo, cresceu muito nestas eleições. A velha política está mais viva do que nunca. O presidente pode ter se tornado seu refém em definitivo ou, apenas, ter reencontrado seu hábitat natural. Se sobreviver aos próximos dois anos, vem com tudo.
Gostaria de estar mais convicta de que a carreira de Bolsonaro acabou. É um presidente que, como sempre nos lembra o mestre Gabeira (cada dia melhor em seus comentários), tem um pacto com a morte. Mudança nas leis de trânsito, afrouxamento no controle de armas, apreço pela tortura, negação da pandemia e desmatamento formam um abraço com o lado sombrio da Força. A falta de empatia deste governo é terrível. Parece estar afetando a população.
Estava começando a escrever a coluna quando dei de cara com a imagem, no jornal, de um corpo largado no chão de uma padaria. Eu já não estava vendo o copo tão cheio assim e a foto me paralisou.
Era uma manhã em Ipanema, como outra qualquer. Um homem entra em uma padaria tossindo sangue e implora por ajuda. Funcionários e clientes continuaram nos seus afazeres. O homem morre. Carlos Eduardo, o Macaquinho, era um morador de rua, rosto conhecido pela vizinhança. Mas lá ficou, estendido no chão. Sem pressa, foi cada um pro seu lado.
Como explicar que pessoas continuassem a tomar seu cafezinho com pão na chapa, enquanto o corpo de Carlos Eduardo, coberto por um saco de lixo, permanecia no chão? Invisível na vida e invisível na morte. Que gente é essa? Em que país nos transformamos?
Os anos de raiva e polarização nos fizeram perder o rumo. Antes de fazer projeções para 2022, especular sobre a nova esquerda, a frente ampla ou o centro democrático, eu gostaria de entender que país queremos ser. Onde foi que nos perdemos e como vamos nos recuperar. Ainda tenho a esperança de ver uma campanha em torno de uma agenda positiva. Cansei do voto útil. Mas estamos novamente buscando nomes em lugar de ideias ou projetos para a nação Brasil.
Éramos conhecidos mundialmente pela nossa afetividade, alegria e solidariedade. Mesmo que muitas vezes de forma caricatural, os brasileiros eram celebrados pela música, pelo melhor futebol do mundo, pelo carnaval e pela natureza diversa e exuberante. Na economia, fizemos o mais famoso plano de estabilização, o Real, e criamos uma das melhores políticas de transferência de renda do mundo, o Bolsa Família.
Hoje, viramos chacota e ficamos constrangidos com nossa participação em fóruns internacionais, como Davos, ONU e G-20. Não visto mais a camisa verde-amarela da seleção. Não por conta do péssimo futebol que Tite nos oferece, mas pelo constrangimento de ser vista como uma nacionalista-bolsonarista. Nosso patriotismo anda envergonhado, porque passou a ser confundido com nacionalismo.
Há muitos anos, George Orwell escreveu que o patriotismo é a “devoção a determinado lugar particular e a determinado modo de vida, mesmo quando se acredita que sejam os melhores do mundo, não se tem vontade de os impor aos outros. De outro lado, o nacionalismo é inseparável da avidez pelo poder”. E carregado de ódio ao vizinho. (O Estado de S. Paulo – 04/12/2020)
ELENA LANDAU, ECONOMISTA E ADVOGADA