A geopolítica do confuso regime bolsonarista vem transformando evangélicos de governo em partido político imaginário para absolver-se de erros e enganos
Volta e meia o presidente da República menciona que vai nomear alguém terrivelmente evangélico para uma eventual vaga no Supremo Tribunal Federal. Por que não alguém indiscutivelmente jurista, capaz, justo, de formação jurídica acima de qualquer suspeita? Por que tem que ser alguém com um qualificativo que o identifica como sectário de uma crença, que é o que significa o terrivelmente? O do modo terrível, aterrorizante, medonho? Já não basta o medonho das incertezas que estamos vivendo?
O reiterado anúncio de um juiz “terrivelmente evangélico” não tem a seriedade que se tem o direito de esperar e exigir de um presidente da República. Às vezes parece gozação, outras vezes parece coisa de quem ouviu cantar o galo, mas não sabe onde. No mais das vezes é claramente fala de alguém brandindo a língua flamejante para ameaçar o povo brasileiro e as instituições. Mais do que o improvável reconhecimento de cidadania a que os evangélicos têm direito.
Os verdadeiros evangélicos nunca se definem como terrivelmente evangélicos, porque é ela expressão anticristã. Vem de seitas fundamentalistas que declararam uma guerra santa à laicidade das instituições e à diversidade de crenças e convicções do povo e do regime republicano brasileiros. É coisa de quem não tem fé, mas tem ambição.
É o indício de que o discurso vem da versão mística e populista da geopolítica do desmonte das instituições e das leis sociais consolidadas. Para confirmar nossa sujeição econômica e política aos interesses da potência internacional que nunca se conformou com a possibilidade de o Brasil ter seu próprio rumo na economia, na política e na própria religião.
É expressão pseudorreligiosa do materialismo econômico neoliberal. É coisa dos vendilhões do templo exorcizados por Cristo nos quatro Evangelhos. É coisa de um cristianismo de cabeça para baixo.
Nessa perspectiva, o Brasil deixa de ser um país para viver para ser uma colônia para obedecer. Ser terrivelmente evangélico no poder é instrumento desse projeto de desconstrução do país para satelitizá-lo. Isso significa destituir o país de suas metas próprias e da possibilidade de um projeto de nação que nos emancipe e nos empurre para a frente. Isso é coisa de potência estrangeira infiltrada na mentalidade dos frágeis de consciência cívica.
A geopolítica do confuso regime bolsonarista, que assume a forma de corporação de família e de vassalos, de gente sem mandato, infiltrada no poder, vem transformando evangélicos de governo em partido político imaginário para absolver-se de erros e enganos. Como tudo é descartável nesse regime, também os evangélicos correm o risco de sê-lo.
A verdade é que os evangélicos não precisam disso nem precisam se submeter a essa humilhação antievangélica que é a de negarem uma tradição firmada no Brasil pelos protestantes, a de exigir de todos o respeito pelas instituições. Isso é neles histórico. Num Brasil que já foi um país de analfabetos, os protestantes se destacaram por preconizar no mínimo a alfabetização dos crentes para assegurar-lhes o livre exame da Bíblia e o acesso racional à verdade do conhecimento.
Não é, pois, estranho que haja em sua história gente muito talentosa: escritores, pensadores, cientistas, artistas. Se os protestantes dessem visibilidade aos nomes dos seus intelectuais que contribuíram decisivamente para a formação do Brasil moderno, o povo brasileiro ficaria surpreso e agradecido. Poderá não ficar surpreso nem agradecido com a onda voraz do uso da fé pelo poder.
É preciso compreender e temer que o presidente da República estabeleça um requisito anômalo para que alguém seja ministro do Supremo, o da religião, o que é inconstitucional. E quando não é a religião, como agora, em relação ao indicado do momento, é a aparente insuficiência de solidez dos títulos que ornam os seus créditos. O que o torna tão frágil quanto os terrivelmente evangélicos de outras cogitações.
As evidências de que evangélicos estão sendo manipulados e envolvidos em decisões de governo fora dos marcos da Constituição e das leis indicam que as igrejas vacilam na vigilância em relação ao respeito às grandes tradições de sua fé e de sua história na sociedade brasileira.
Mais que isso, o governo – e o presidente em particular – está expondo os evangélicos na corresponsabilidade por atos, modos e ações opostos a sua ética e a sua crença. Quando alguém é associado a desvios em relação à ética na política, ninguém repara. Passa a reparar se sua vinculação religiosa aparece colada a sua biografia. Isso tem acontecido com evangélicos e protestantes, o que certamente é injusto em relação às igrejas e àqueles que são fiéis aos valores rígidos de suas crenças. (Valor Econômico – 16/10/2020)
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).