O discurso do presidente Jair Bolsonaro, na abertura da assembleia das Nações Unidas, no dia 22, foi um discurso revelador do que é, nele, a fabricação do governante na conjuntura política inaugurada no dia 1º de janeiro de 2019.
Os presidentes, os reis, os papas são construções imaginárias que os fazem diferentes do que são em carne e osso, por nascimento e educação, para que se tornem a outra pessoa que devem ser quando chamados ao exercício da função impessoal do poder.
O aspecto fascinante da apresentação pública da pessoa que hoje ocupa a Presidência da República está no que nos revela e pode revelar a arqueologia que lhe expõe os acertos e erros, incoerências e contradições à luz do que deveria personificar e não consegue.
Na ONU, ele se apresentou perante o mundo como réu. Defendeu-se, acusando. Fê-lo mal porque as fragilidades de seu governo não têm defesa. Foi um discurso de província, aos coadjuvantes e não às nações. Sua palavra não foi expressão de consciência dos dilemas da sociedade contemporânea. Não falou como estadista e conselheiro a partir da difícil e problemática experiência brasileira de país cada vez mais rico e cada vez mais pobre ao mesmo tempo.
Que lições tirar dessa contradição que nos oprime e diminui? Que lições recomendar às nações num momento em que os países democráticos e lúcidos já sabem que o sistema econômico terá que ser significativamente reformulado para superar o equívoco da economia iníqua do lucro sem limite e sem ética? Que reformas sociais são necessárias para que a sociedade moderna se torne uma sociedade justa e acolhedora? Como salvar o capitalismo sem inviabilizar a democracia?
O mundo tem acumulado riquezas que demonstram que a justiça social é possível. Falta-nos a clareza da faxina ética que remova do protagonismo do poder aqueles que já não representam a consciência das carências radicais que nos pedem a reforma social e política profunda, que nos devolva a nós mesmos.
O discurso de Bolsonaro na ONU revelou-se distante do que se espera de quem fala dessa tribuna excelsa. Historicamente é tribuna para a voz sensata dos que têm algo a dizer como porta-vozes da condição humana. Gente que sabe falar a língua humanitária de Mahatma Gandhi (1869-1948), que, na roca simbólica, fiou pacientemente a linha da não violência na construção da independência da Índia. O fio que desmoralizou e esvaziou a tradição militarista da dominação colonial.
Ou gente que conhece a língua do silêncio revolucionário, como Nelson Mandela (1918-2013). Nos muitos anos de sua prisão, sabia que na mordaça da cadeia se transformava em guerrilheiro da construção de uma nação, símbolo de liberdade e de emancipação. Seus opressores tiveram que ir buscá-lo no cárcere para pedir-lhe que fizesse da África do Sul um novo país, lugar de todos e não lugar de alguns. Ele ensinou aos brancos a dialética de que só os negros poderiam libertá-los ao libertarem-se a si mesmos.
Gente como Martin Luther King (1929-1968), cuja marcha arrastou consigo a consciência da América em direção a Washington e à universalização dos direitos civis. Um negro que limpou da falsa brancura americana a sujeira do sectarismo, da discriminação e da desigualdade racial.
Ou gente como o cacique Raoni Metuktire, um dos raros brasileiros que sabem falar ao mundo sobre a humanidade das nações indígenas, de seu direito à diferença social e antropológica, sua visão de mundo ancestral. Num só, ele é os muitos indígenas que falam todos os dias a fala daquele cacique suruí-paíter, de Rondônia, nos anos 1970, que no contato com o primeiro branco, em seu território invadido, durante a ditadura militar, não o flechou. Apenas disse-lhe: “Branco, eu te amanso!”.
Jair Messias mostrou-se muito aquém desses monumentais modelos de pessoa, de gente comprometida até o fundo da alma com a universalidade do gênero humano, sua libertação e sua emancipação das carências éticas e políticas minimizantes e empobrecedoras.
Seu discurso foi uma costura malfeita de retalhos de informações mutiladas. Não foi um discurso para informar, mas apenas para encobrir as próprias insuficiências e os erros do governo.
Sua referência torta a índios e caboclos como responsáveis pelos incêndios no Pantanal e na Amazônia é desinformada. Nessa tradição cultural e técnica da agricultura de roça, como é definida, há uma sabedoria ancestral que protege a natureza necessária à sobrevivência humana. O oposto da voracidade iníqua e lucrativa da devastação imediatista promovida pelo ilegalismo do latifúndio, o da doutrina de deixar a boiada passar, o do fogaréu.
O presidente do Brasil apresentou ao mundo um discurso de má assessoria e de má consciência. Coisa de amadores. (Valor Econômico – 02/10/2020)
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).