Não passa um único dia sem que atos do governo e do governante exponham indícios significativos das deformações constitutivas do Estado brasileiro. Até religiões têm tido aí uma função.
É esse quadro de referência que dá sentido à decisão do presidente da República de vetar parcialmente o perdão das dívidas tributárias das igrejas, projeto apresentado ao Legislativo por deputado que é filho de conhecido pastor de igreja neopentecostal.
Ao mesmo tempo, numa rede social, mandou Jair Messias aos membros do Congresso o recado de que, se fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do veto. Vetou para não incorrer em crime de responsabilidade e no risco de perda do mandato. Cumpre a lei e a descumpre ao mesmo tempo porque o sistema tem uma brecha como essa, que o permite.
O Estado entende que as igrejas têm lucro. O que sugere, para quem crê, que, se tem lucro, não são igrejas e devem ser tributadas. Se são igrejas, não podem ter lucro, e o tributo não cabe. O presidente não vetou, porém, o descabido perdão das dívidas previdenciárias das igrejas. Dívida para com a previdência social é sagrada, pois o credor não é o governo, é quem trabalhou a vida inteira, contribuiu e dela depende ou vai depender.
Neste país, se o assunto envolve religião, é, supostamente, assunto de Deus. Nesse caso, vale tudo. A verdade é que temos uma questão religiosa, que se atualiza desde que houve o caso do “Cristo no júri”, em 1891.
Um tema suscitado pelo dr. Miguel Vieira Ferreira (1837-1895), engenheiro militar, doutor em matemática e física, republicano histórico, abolicionista e fundador e pastor da Igreja Evangélica Brasileira, a primeira dissidência local da Igreja Presbiteriana. Recusou-se a participar de uma sessão do júri se um crucifixo que ali havia não fosse removido.
A imagem era violação de sua liberdade de consciência. A questão se estende sem solução até hoje. No recinto do Supremo Tribunal Federal, um crucifixo desafia a premissa da liberdade religiosa dos cidadãos. Um dos ministros já o reconheceu informalmente.
Quando a República foi proclamada, um decreto proposto pelo ministro da Justiça separou o Estado da Igreja. A República não teria religião oficial. Isso não queria nem quer dizer que a prática religiosa é proibida. Ao contrário, a separação entre Estado e Igreja no Brasil teve por finalidade assegurar a democrática liberdade religiosa, a liberdade de consciência e o direito individual de cada qual ter ou não ter uma religião.
O Estado republicano proclamou-se, assim, um Estado em favor da tolerância religiosa decorrente da liberdade de crença. A religião passava a ser reconhecida como um bem dos direitos individuais. A sociedade é plural, e o Estado não pode ter nem impor religião.
O tempo passou. Os acatólicos, como os chamavam, se multiplicaram. Na categoria “evangélicos”, surgiram os neopentecostais, que dos protestantes se diferenciam e muito. Diferentes facções religiosas passaram a identificar-se com a chamada teologia da prosperidade.
É oposição à teologia da libertação, católica e, também, protestante, da opção preferencial pelos pobres. Especialmente com os neopentecostais, houve reforço da tese originalmente calvinista de que o dinheiro e a acumulação de capital são os indícios fortes da predestinação do crente à salvação.
O que ganhou sentido indevido, aliás, nas brechas da alienação popular e da estrutura do poder político, as de deixar passar a boiada, isto é, do que não parece ter abrigo na lei e na Constituição. Mas é da conveniência de alguém, do governo, ainda que não necessariamente do Estado, que deveria ser instrumento da vontade democrática do povo.
Tudo aqui se torna dependente da disposição do governante para transgredir e da coragem de nesse sentido ousar. Esse veto parcial pode ser compreendido nessa perspectiva.
As eleições de 2018 não elegeram simplesmente um governo. Deram respaldo a uma concepção de poder fundada em técnicas de transgressão do muito de fragilidade e de brechas que há na ordem política e no pacto implícito na Constituição de 1988. O sistema político brasileiro, historicamente, não é baseado nas regras pactadas, mas nas exceções que propositalmente comportam.
A “teoria da boiada” é a teoria das exceções da Constituição e das leis. Somos gente esperta, como o autor da tese. Base extralegal da esperteza de alguns que nos impede de chegar onde podemos.
O Brasil está sendo transformado num país de clandestinidades que atuam no sentido de demolir e apagar da lei e da prática do Estado conquistas democráticas que os governantes não foram autorizados a suprimir. Trata-se de uma usurpação antidemocrática de direitos, especialmente de direitos sociais. (Valor Econômico – 25/09/2020)
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).