Reforma Administrativa precisa de regulamentação, não de PEC
Em Brasília, sempre que um governante ou ministro quer mostrar serviço, ele prepara uma PEC para ser enviada ao Congresso. O anúncio movimenta a mídia, gera discussões entre especialistas, atiça debates entre parlamentares e, principalmente, passa ao público a impressão de que o governo está realmente empenhado em resolver os muitos e graves problemas nacionais. Propor uma PEC sempre faz muito barulho, mas em geral produz pouco resultado.
Se a classe política estivesse realmente empenhada em realizar uma reforma administrativa para modernizar a gestão de pessoal no serviço público, reduzir distorções nas remunerações em relação ao setor privado e eliminar privilégios de carreiras, não seria necessário enviar nenhuma PEC para o Congresso – bastaria ter a coragem de regulamentar aquilo que já foi inserido na Carta Magna pelos constituintes originais em 1988 e depois pelas reformas encaminhadas pelos presidentes Fernando Henrique e Lula na virada do século.
A estabilidade do servidor público acabou há 22 anos, quando o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional nº 19, determinando que o servidor público poderia perder o cargo caso não fosse aprovado em avaliação periódica de desempenho.
Já os penduricalhos nas remunerações da elite do funcionalismo público (inclusive magistrados, procuradores, servidores do Legislativo e militares) estão limitados aos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal desde 2003, após a aprovação da Emenda Constitucional nº 41.
Desde 1998, também, nossa Constituição define que cada ente federativo deverá estabelecer em lei os requisitos para a entrada no serviço público, os graus de responsabilidade e complexidade dos cargos e os seus respectivos sistemas remuneratórios.
Paulo Guedes pretende submeter os servidores públicos federais à lógica de meritocracia? Pois bem, em 28/11/1998 FHC enviou para o Congresso o PLP nº 248, disciplinando “a perda de cargo público por insuficiência de desempenho do servidor público estável”. A matéria foi aprovada na Câmara em 1999 e, no início de 2000, passou também pelo crivo do Senado. Como os senadores propuseram modificações, o texto retornou à Câmara, onde tramitou lentamente ao longo das duas últimas décadas.
A boa notícia é que a matéria já foi aprovada pelas comissões e agora aguarda somente a votação em Plenário para ir a sanção presidencial. Dependendo apenas da vontade política do governo e de Rodrigo Maia, os maus servidores públicos poderiam iniciar 2021 podendo ser demitidos por insuficiência de desempenho – sem PEC, sem nada.
Agora, se o objetivo for eliminar os adicionais que inflam salários nos três Poderes, fazendo valer, de verdade, o teto remuneratório no serviço público, não é necessário mexer novamente na Constituição, pois essa regra já existe deste 2003. Se o governo realmente quiser extirpar, com uma única canetada, o cipoal de leis e decisões administrativas que concedem toda sorte de acréscimos remuneratórios travestidos de auxílios-moradia, honorários de sucumbência pagos a advogados públicos, bônus de produtividade de fiscais da Receita, ajudas de custos a diplomatas, jetons por participação em conselhos de estatais e por aí vai, só é preciso pressionar pelo avanço do PL nº 6.726/2016.
Elaborado por uma Comissão Especial liderada pelos senadores Antônio Anastasia (PSD/MG) e Kátia Abreu (PP/TO), o projeto que submete todos os agentes públicos aos R$ 39.293,32 mensais recebidos pelos membros da Suprema Corte foi aprovado pelo Senado no final de 2016 e desde o início de 2019 aguarda a decisão do presidente da Câmara para designar a Comissão Especial que vai concluir a sua apreciação, antes de ir a plenário. Já há inclusive um parecer do relator Rubens Bueno (Cidadania/PR) sugerindo a aprovação do projeto, mas a proposta ainda jaz numa das gavetas de Rodrigo Maia.
E mesmo que Bolsonaro não queira afetar a situação dos servidores atuais, Guedes poderia muito bem tirar do armário de seu ministério os anteprojetos elaborados por integrantes de sua equipe econômica ainda no governo Temer e que reformulam as centenas de carreiras do serviço público federal, reduzem a remuneração de entrada e alongam os prazos para promoções. As propostas já estão prontas desde 2018 e bastaria vontade política do atual ministro da Economia para convencer o presidente a enviá-las ao Congresso de imediato.
Mas se o propósito for reduzir as distorções entre as condições de trabalho entre os setores público e privado, ajudaria muito fazer um pente-fino na Lei nº 8.112/1990, que regulamenta o regime jurídico único dos servidores federais. Alguns desses benefícios têm valor quase simbólico – alguns dias a mais de licença em caso de casamento ou falecimento de familiares próximos, por exemplo.
Outras benesses são ainda mais injustificadas, como regimes bem mais generosos do que o oferecido pelo INSS para afastamentos em caso de tratamento de saúde (extensivo a familiares) ou a liberação por até três meses (com remuneração!) para fazer campanha eleitoral caso o funcionário deseje se candidatar a algum cargo eletivo.
Alguns ajustes na legislação dos servidores públicos também poderiam gerar até alguma economia para nossos combalidos cofres públicos, como a restrição da ajuda de custo de até três salários mensais em caso de remoções e a eliminação do auxílio-funeral de um salário extra para a família em caso de falecimento (mesmo se já estiver aposentado). O valor seria irrisório em relação ao monstruoso déficit público atual, mas pelo menos o governo sinalizaria que está realmente empenhado em eliminar distorções que não fazem mais sentido em pleno século XXI.
Bolsonaro e Guedes apenas chovem no molhado ao pensarem que reformularão o serviço público mudando novamente a Constituição. A verdadeira reforma administrativa precisa ser feita via legislação ordinária e complementar. Para isso, não precisamos de PEC, mas sim de coragem para enfrentar as corporações e aprovar projetos que já estão maduros no Congresso Nacional há anos. (Valor Econômico – 14/09/2020)
Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.