NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
No Dicionário Houaiss, o significado de recrudescer é “exacerbar-se”, “agravar-se”, se tornar mais intenso. A palavra ficou famosa durante o regime militar, quando o presidente João Batista Figueiredo, que era grosseiro pra caramba, brandiu o verbo. Outro dia, o cronista da Folha de S.Paulo Ruy Castro, grande biógrafo de Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmem Miranda, além de historiador da bossa nova, na base da gozação, resgatou a frase enigmática do último presidente do regime militar: “Reagindo às tremendas pressões sobre ele, vindas tanto dos civis quanto da linha-dura militar, Figueiredo explodiu: ‘Olha que eu recrudesço!’. O país parou, expectante. Parecia uma ameaça — mas de quê, como e contra quem? No Pasquim, Jaguar botou seus dois calunguinhas para discutir. Um deles pergunta: ‘O que é ‘recrudesço’?’. E o outro: ‘Não sei. Mas tem cru no meio’. Apesar da censura e das prisões, a turma do Pasquim não refrescava o general Figueiredo.
Pois bem, Bolsonaro recrudesceu nas grosserias. Irritado com um repórter do jornal O Globo, que havia lhe feito a pergunta que não quer calar nas redes sociais — “Presidente, por que a sua esposa recebeu R$ 89 mil do Fabricio Queiroz?” —, Bolsonaro partiu para a ignorância: “Vontade de encher sua boca de porrada”, respondeu. Estava em silêncio obsequioso desde quando o tempo fechou no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso, contra sua escalada para intimidar os demais poderes. Na semana passada, porém, voltou a ficar à vontade, fortalecido pela bem-sucedida articulação de sua nova base na Câmara e por pesquisas de opinião que, depois de longo tempo, registram aprovação popular maior do que a desaprovação. O caso Queiroz, porém, é seu calo inflamado. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, está cada vez mais enrolado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa e nas movimentações financeiras suspeitas de Queiroz, o amigo do presidente e seu ex-assessor parlamentar, que arrasta o clã para as relações perigosas com o submundo das milícias do Rio de Janeiro.
A ameaça de agressão ao jornalista virou meme nas redes sociais, com a pergunta sendo repetida não só por grande número de seus colegas, como também por formadores de opinião e influenciadores digitais. É óbvio que a base de Bolsonaro, que é truculenta e não suporta a mídia tradicional, vibrou com a resposta do presidente. Mas a sua repercussão política foi péssima, tanto no Congresso como internacionalmente. O presidente vinha cultivando a imagem “Jair paz e amor”, para alegria dos militares que formam seu estado-maior no Palácio do Planalto e dos líderes do Centrão, que dão sustentação ao governo. A declaração explosiva foi um banho de água fria nas expetativas de uma distensão com a mídia.
Rachadinha
O governador de São Paulo, João Doria, desafeto do presidente, ironizou: “Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro”. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, também não deixou barato: “O presidente vinha muito bem nas últimas semanas. Com sua moderação estava contribuindo para a pacificação do debate público. Lamentável ver a volta do perfil autoritário que tanta apreensão causa nos democratas”, disparou no Twitter. O caso Queiroz tira Bolsonaro do sério porque a história da rachadinha chegou ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro não pode ser investigado por fatos ocorridos antes do seu mandato, salvo se atuar para obstruir a Justiça, mas a primeira-dama pode. E seu filho mais velho, o senador Flávio, está cada vez mais enrolado na Justiça. O envolvimento de Michelle tira o sono de Bolsonaro, porque cada vez mais a história tece um enredo de não-conformidades na atuação parlamentar de todo o clã.
Se alguém pensava que o caso fosse parar por aí, ontem, Bolsonaro voltou a atacar os jornalistas: “Aquela história de atleta, né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega (covid-19) num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Deu a declaração durante discurso no Palácio do Planalto, no evento batizado de “Brasil vencendo a covid-19”. Como assim? Estamos levando uma surra do vírus letal. O Brasil registrava 3,6 milhões de casos e 115 mil mortes, até ontem à tarde. Depois de desafiar a doença até contraí-la, Bolsonaro passou de vilão a vítima da pandemia, à qual sobreviveu, segundo diz, se tratando com cloroquina e outros medicamentos. Mas a pandemia não acabou, o trauma causado pela doença atinge um número cada vez maior de famílias. De certa forma, o silêncio e a doença descolaram Bolsonaro da pandemia, mas o desgaste de sua imagem por causa da peste também pode recrudescer. (Correio Braziliense – 25/08/2020)