Profissionais de saúde devem agir mais como profissionais de saúde e menos como juízes
Assim como existe o racismo estrutural, existe o antiabortismo estrutural. O caso da menina de dez anos que ganhou as manchetes nos últimos dias é a crônica desse viés institucional contra a autonomia da mulher.
Se uma criança de dez anos aparece grávida, a primeira providência de qualquer serviço de saúde deve ser realizar o aborto e só depois começar a fazer perguntas. Do ponto de vista da legislação, não há que pestanejar.
Uma gestação em menor de 14 anos só pode ser resultado do que antigamente se chamava de estupro presumido. Uma gestação aos dez anos implica risco de vida. São as duas hipóteses em que o Código Penal (CP) autoriza o aborto. Detalhe importante: nem o CP nem nenhuma outra lei exigem autorização judicial para a realização do procedimento.
É preocupante que o hospital de São Mateus (ES), em que a garota recebeu o primeiro atendimento, não tenha feito o aborto imediatamente e se tenha buscado o aval de um juiz. É incompreensível que o hospital de Vitória, para o qual ela foi encaminhada, mesmo de posse da autorização judicial, tenha enrolado para fazer o procedimento. E é absurdo que a notícia de que a menina viajaria para Recife para abortar tenha sido vazada (talvez por funcionários do hospital), submetendo-a ao constrangimento de enfrentar a turba que a chamava de assassina.
A sobreposição de erros nessa história assusta, mas meu ponto é mais geral. O Brasil tem uma das legislações de aborto mais restritivas do mundo. Até a da Arábia Saudita, uma teocracia islâmica, é mais avançada. Creio, porém, que nossa situação não seria tão ruim se profissionais de saúde agissem mais como profissionais de saúde e menos como juízes.
Se uma mulher procura um serviço dizendo ter sido estuprada, o médico pode realizar o aborto sem fazer muitas perguntas. Se ela estiver mentindo, é ela que corre riscos jurídicos. Hospital não é delegacia. (Folha de S. Paulo – 19/08/2020)