Marco Marrafon e Elora Raad: A necessária proteção de dados das crianças e adolescentes na educação online

A pandemia causada pelo coronavírus acelerou uma verdadeira revolução paradigmática no modo de existir da humanidade. No Brasil, apesar da necessidade de superar inúmeros desafios — tais como a dificuldade de conexão com internet de qualidade, a falta de educação digital e a grande desigualdade no acesso aos meios tecnológicos —, é nítido que, com as ordens de distanciamento social pronunciadas em vários estados brasileiros, a vida das crianças e dos adolescentes se tornou digital por padrão.

Nesse contexto, um problema grave salta aos olhos: a desconsideração da importância da privacidade e da proteção de dados de crianças e adolescentes. Impossibilitados de realizar suas atividades cotidianas fora de casa, os menores passam a se relacionar com o meio social, principalmente, por meio de plataformas online.  A partir da autorização pelo Ministério da Educação (MEC) para a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais e das diretrizes aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), essa nova realidade também tem chegado às escolas, que têm tentado se adaptar.

Essa experiência coletiva sem precedentes, que exacerba o contato com as tecnologias, torna possível vislumbrar um futuro que se mostra cada vez mais conectado, o que pode representar muitas oportunidades para os jovens. Todavia, isso também tem revelado uma face sombria da realidade brasileira, tão desigual que não está preparada para lidar com a inserção das tecnologias na educação e necessita, urgentemente, da aplicação de melhores soluções para a proteção dos dados e tratamento adequado do uso dessas valiosas informações.

Privacidade e proteção de dados de crianças e adolescentes na educação mediada por tecnologia Diante da pandemia, escolas privadas e as diversas secretarias de educação estão correndo contra o tempo para adaptar os seus calendários às necessidades do distanciamento social. A pressa para encontrar a plataforma ou ferramenta adequada, porém, pode levar a consequências inimagináveis, especialmente, no que se refere à privacidade e à proteção dos dados das crianças e dos adolescentes.

Os dados coletados pelas plataformas utilizadas para o ensino à distância são extremamente valiosos, engloba imagens, falas e manifestações de preferências e opiniões dos estudantes. A chamada datificação da infância pode representar modificações profundas na vida desses adultos do futuro, possibilitando desde a propaganda direcionada ou a recusa a uma vaga de trabalho até a manipulação da democracia em que estão inseridos. A vigilância por parte de governos e empresas podem também ser incluídas nesse pacote de preocupações.

Antes mesmo da crise atual, diversos estados e municípios brasileiros já vinham realizando parcerias para a inserção de tecnologias nas salas de aula. A pandemia, porém, fez com que esses processos se intensificassem. No Rio de Janeiro, por exemplo, o uso do Google Classroom pela rede estadual tem feito com que professores relatem diversos problemas enfrentados por eles e pelos alunos. Dificuldade para baixar o programa, falta de acesso à internet e vergonha de utilizar a câmera — pois os outros participantes veriam suas condições de moradia — são apenas alguns dos problemas relatados.

Nesse sentido, em mapeamento inédito, realizado pela iniciativa Educação Vigiada, podemos perceber que as tecnologias proprietárias estão cada vez mais presentes nas instituições de ensino brasileiras, em detrimento de tecnologias de código aberto (que permitem o seu escrutínio público, a diminuição dos custos para o Estado e uma maior democratização do uso dos dados produzidos). O Brasil encontra-se em posição de importador de tecnologias que, muitas vezes, não refletem os valores que estão presentes na Constituição de 88 e que se projetam na sociedade.

Terceirizando a construção dessas ferramentas, o Brasil perde em soberania tecnológica e na possibilidade de desenvolver soluções para seus próprios problemas, ficando refém da política de governos e empresas estrangeiras. A concentração de poder informacional nas mãos de poucas empresas de tecnologia deve nos fazer pensar na existência de um novo colonialismo, protagonizado por esses agentes que, devido à grande concentração de dados sobre os cidadãos, acabam limitando a realidade mundial à sua própria episteme.

Essas tecnologias serão utilizadas na educação para formar cidadãos mais críticos ou apenas consumidores de produtos e serviços de um número limitado de empresas? Elas são capazes de os libertar de uma educação tradicional e bancária? O sucateamento da educação e a perda da capacidade de desenvolvimento dessas tecnologias no Brasil não estariam conectados ao aproveitamento desse nicho pelo setor privado?  Além das perguntas acima, é necessário questionar se essas tecnologias estão adequadas ao marco regulatório brasileiro já existente e à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que ainda está em vacatio legis.

Em relação a essa normativa, é necessário que, de maneira geral, a aplicação escolhida respeite os diversos princípios da norma, presentes em seu artigo 6º. Destaca-se aqui a definição de uma finalidade específica e legítima para o tratamento dos dados dos menores, a compatibilidade do tratamento com essa finalidade (adequação) e a limitação do tratamento apenas ao mínimo necessário para a realização dessas finalidades (necessidade).

Especificamente em relação às crianças e aos adolescentes, é imperativo que o tratamento de dados esteja de acordo com o princípio do melhor interesse, presente no caput do artigo 14, da LGPD [1].  Da mesma forma, a lei traz a necessidade de um consentimento específico, fornecido pelos responsáveis da criança ou pelo próprio adolescente (§1º) e da utilização de uma linguagem adequada ao entendimento dos menores acerca das informações sobre o tratamento de dados (§6º). Mesmo que a LGPD ainda não esteja em vigor, isso não quer dizer que não existam parâmetros mínimos para o tratamento de dados dessas pessoas no país.

Assim, é de todo útil e necessário que o Ministério da Educação promova uma regulamentação adequada à LGPD ao ensino mediado por tecnologia ou que o poder público, em especial o Poder Executivo pederal, edite Medida Provisória determinando que os ditames da LGPD possuem vigência imediata em matéria de educação, com vistas à proteção dos direitos das crianças e adolescentes. Ainda que não haja ação dos poderes constituídos, a legislação vigente já impõem que as escolas públicas e privadas adotem mecanismos de proteção de dados, sob pena de responsabilização civil, administrativa e mesmo criminal.

Apesar de fragmentada, é possível identificar uma regulação no ordenamento jurídico brasileiro, constituída, principalmente, pela Constituição Federal, pelo Código de Defesa do Consumidor, pelo Marco Civil da Internet e pela Lei de Acesso à Informação. A partir dessas normativas, é possível reconhecer a necessidade de proteção dos princípios elencados acima e, no que se refere aos menores, a Convenção sobre os Direitos da Criança deve servir de lente hermenêutica em toda decisão que os impacte.

Destaca-se, ainda, o próprio reconhecimento do direito à proteção de dados pelo Supremo Tribunal Federal, em histórica decisão acerca do compartilhamento de dados com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), autorizado pela MP 954. Nesse mesmo sentido, tramita no Congresso a Proposta de Emenda à Constituição nº 17 de 2019, que tem como objetivo constitucionalizar o direito à proteção de dados como direito fundamental.

Assim, diante do cenário que se constrói, não é mais possível fechar os olhos para as especificidades de crianças e adolescentes que precisam de um ambiente seguro de aprendizagem, para que possam se desenvolver. É preciso lembrar que escola não é apenas um local em que o conhecimento é transmitido de professores a alunos. A escola envolve também a criação de vínculo e de relações pessoais, sem os quais é impossível construir um aprendizado crítico, voltado ao desenvolvimento da pessoa  [2].

Assim, a importância que a escola exerce para o desenvolvimento humano precisa ser levada a sério. Por isso mesmo, a tecnologia a ser implementada nesse momento deve ser algo discutido com cuidado e de maneira democrática, levando em consideração a realidade de cada comunidade e as necessidades específicas de seus alunos. Da mesma maneira, a análise da proteção dos dados de crianças e adolescentes nessas plataformas se faz obrigatória durante a contratação.

As decisões tomadas hoje, sem que se tenha em vista as consequências do uso massivo de tecnologias de vigilância para o futuro, podem gerar a naturalização da perda das liberdades e da exacerbação das desigualdades. Assim, é imperativo que empresas e governos passem a assumir seu papel na promoção dos direitos de crianças e adolescentes [3] e incorporem o melhor interesse dos menores no design de suas tecnologias, com vistas à adequada proteção no tratamento dos dados obtidos no processo educativo.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) (Artigo originalmente publicado no site da revista Consulto Jurídico em 6 de julho de 2020).

[1] Destaca-se que este princípio está presente há bastante tempo em nosso ordenamento, a partir da ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança. Na mesma linha, a Constituição Federal, em seu artigo 227, traz a necessidade de prioridade absoluta na concretização dos direitos de crianças e adolescentes, por todos os atores da sociedade.

[2] “Artigo 205 — A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. — Constituição Federal.

[3] “Artigo 227 — É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. — Constituição Federal.

Marco Aurélio Marrafon é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Elora Raad Fernandes é doutoranda em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestra em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

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