Em recente reunião do Conselho da Editora do Senado, presidido pelo senador Randolfe Rodrigues, a conselheira Ana Luísa Escorel perguntou: “O que esquecemos de fazer para deixarmos o Brasil nesta situação, no lugar de termos construído uma nação condizente com o tamanho de nosso território e de nossa população, nossa riqueza natural e cultural?” Há muitas respostas complexas, mas uma simples: “Nós esquecemos o povo”.
Em 19 de novembro de 1889, o Brasil tinha 65% da população analfabeta, mas a nova bandeira da República foi desenhada com um lema escrito, deixando na ocasião 6 milhões de brasileiros esquecidos, incapazes de reconhecer a própria bandeira. Em 2020, a percentagem diminuiu, mas o número de analfabetos dobrou, são 12 milhões, apesar de dezenas de presidentes, centenas de ministros, milhares de deputados, senadores, governadores, milhões de universitários e intelectuais, muitos governos, de direita ou esquerda, ditatoriais ou democratas.
Ao longo desse período, pode-se estimar que de 25 a 30 milhões de brasileiros morreram adultos sem reconhecer a bandeira; mais de 100 milhões morreram sem capacidade e gosto para ler uma página inteira de um livro da história de seu país ou de qualquer outro livro. Ao longo da República, esquecemos de alfabetizar nosso povo. Além de não alfabetizar, deixamos a educação de base entre as piores e, provavelmente, a mais desigual no mundo, e quase toda a população sem a educação necessária para construir uma grande nação no século 21.
Em 2018, depois de 35 anos de democracia, dos quais 26 governada por democratas-progressistas, sendo 14 por governos de esquerda, deixamos 100 milhões sem saneamento, 35 milhões sem água, a renda concentrada para poucos; a economia em recessão, 12 milhões de desempregados; políticos sem credibilidade por corrupção, excesso de privilégios, falta de compromissos e falta de visão nacional para o longo prazo.
A história da República é a história do esquecimento do povo e do enriquecimento de uma minoria, da depredação da natureza e das finanças públicas, da montagem de um Estado ineficiente e inflacionário a serviço dos ricos e do imediato. Fizemos um país corporativizado para poucos e sem desenhos para o futuro.
Condenamos o povo à exclusão: da bandeira nacional, do saneamento, da educação, da saúde, do futuro e da esperança. Não atendemos suas necessidades, nem o formamos como recurso humano. Depredamos nossa natureza, como se ela fosse ilimitada, sem respeitar a necessidade de mantê-la sustentável. Porque esquecemos que o povo continua nas gerações futuras. Desperdiçamos nossos recursos financeiros, privados e públicos, em projetos e privilégios voltados para a minoria rica, atendendo à volúpia dos incluídos e desprezando as necessidades dos excluídos.
Concentramos a renda nacional, usamos recursos públicos para proteger indústrias que nem sempre criaram empregos, nem pagaram bons salários ou os impostos devidos. Fizemos estradas, viadutos e estádios, mas não fizemos escolas, nem redes de saneamento e água. Fizemos política sem grandeza e sem perspectiva histórica. Fizemos o povo pagar, com inflação e juros altos, a dívida para construir uma infraestrutura que nos fez potência econômica e fracasso social.
Nossa “direita” se preocupa com o lucro dos donos dos hospitais privados, e nossa “esquerda” defende mais os servidores dos hospitais estatais do que os doentes na fila nas calçadas. Defendem os interesses dos poucos servidores estatais de saneamento, esquecendo os milhões sem rede de esgoto, nem água tratada. Nas audiências públicas para definir o novo marco regulatório do saneamento, foram ouvidos representantes das estatais, mas não foi ouvido um único representante das 100 milhões de pessoas sem rede de esgoto.
Recentemente, houve preocupação com a desigualdade na preparação entre os que fazem o Enem, mas não há preocupação com a desigualdade entre os que fazem Enem e os que abandonaram a escola antes do final do ensino médio. Há uma militância em defesa de cotas para o ingresso no ensino superior, nenhuma para a cota de 100% para aprender a ler e concluir o ensino médio com qualidade.
Esquecemos o povo. Agora, pagamos o preço do esquecimento. O eleitor se vingou votando no atual governo sem ideias democráticas nem progressistas, sem projeto para o futuro do país, continuando a esquecer o povo e ainda provocando retrocessos até nas boas coisas feitas até aqui. Essa é a resposta à pergunta da conselheira Ana Luísa. (Correio Braziliense – 30/06/2020)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB