Alberto Aggio: Em meio à pandemia, um espectro nos assola

Ao contrário da filosofia por vezes alucinante de Slavoj Zizek, que passou a profetizar o “novo comunismo” como resultado da superação da pandemia e da tresloucada contestação de Ernesto Araujo que o tomou como dado de realidade a atestar a existência da ameaça comunista, não há nenhum espectro desse tipo a assombrar o mundo[1]. O que há é a realidade factual da pandemia a ditar: “decifra-me ou te devoro”.

O enfrentamento ao coronavírus implicou ouvir especialistas e procurar seguir suas orientações. Contra algo desconhecido, os cientistas de todo o mundo trabalham para produzir medicamentos mais eficazes e uma vacina duradoura. Mobilizaram-se recursos, organização e informações claras à população. Mas o alarme foi dado: somos nós, os humanos, que precisamos decifrar o mundo que inventamos. Essa peste não vem dos céus, vem da natureza, e fomos nós que a disseminamos. Não haverá o nascimento da “boa sociedade” a partir de ruinas. Não é razoável supor isso. A pandemia nos obriga a repensar a economia, a cultura, a política e até nossa “filosofia de vida”. Força-nos a repensar a necessidade de governança em plano mundial – Daniel Innerarity construiu uma bela imagem: Pandemocracia, seu mais recente livro[2]. 

O avanço da pandemia mostrou onde a política falhou e onde acertou. Lideranças previdentes agiram rápido e obtiveram êxitos. Lideranças obtusas, como Jair Bolsonaro, agiram sob interesses pessoal e eleitoral, e as consequências estão sendo desastrosas.

Fernando Gabeira observou que, diferente de outros países, nosso problema é termos “o vírus e Bolsonaro”. O presidente minimiza a epidemia, confronta governadores e prefeitos, ataca a mídia e insanamente perambula, sem máscara, por Brasília e cidades próximas, promovendo aglomerações e apoiando manifestações contra a democracia.

Pensou-se que o Brasil teria um gap de vantagem frente aos países onde o vírus emergiu mais cedo. Mas essa vantagem foi perdida a partir do momento em que Bolsonaro transformou a saúde num território de guerra. Isso inviabilizou que se estabelecesse uma estratégia séria e planejada de “isolamento social”. 

Enquanto a pandemia avançou, Bolsonaro martelou pela “volta ao trabalho” e também propôs, na reunião ministerial de 22 de abril, um decreto para armar a população contra as restrições adotadas por governadores e prefeitos. Mais do que politizar o combate à pandemia, Bolsonaro avançou o sinal, sugerindo uma “rebelião armada” de “resultados imprevisíveis” e seguramente deletérios para a Nação. 

O resultado da política de Bolsonaro em relação à pandemia não tardou e instalou a cizânia entre autoridades, acabando com a sinergia entre os entes federativos. A conexão informativa do Ministério da Saúde com a sociedade evaporou-se. A consequência veio no aumento do número de mortos e de contaminados – e o governo só não seguiu com a estratégia de sonegar informações porque a reação foi generalizada e a ameaça de impeachment seria real. 

Sem Estado nem governo, indefesos, os brasileiros se socorrem nas informações da mídia e nos profissionais da saúde, vistos como verdadeiros heróis. Exauridas, as autoridades subnacionais, que continuam resistindo, empreendem, sob pressão de diversos setores, uma temerária flexibilização da quarentena em situação absolutamente desfavorável.

Entrar ou sair do confinamento foi, em vários países, uma determinação impingida pelo vírus e não uma opção irrefletida. O que esteve em jogo foi a vida das pessoas e o bem comum. Foram escolhas políticas a partir de orientações científicas, mas sem obediência cega, ressaltando a importância tanto da complexidade quanto da responsabilidade coletiva que tem a política em âmbito local, nacional e mundial.

Em Zizek e Araujo só há fantasmagorias advindas de uma visão mitológica do comunismo, no primeiro, e de um anticomunismo em roupagem antiglobalista, no segundo. O espectro que ameaça o país é outro. Isolá-lo e superá-lo demandará que nossa “intransigência democrática” caminhe ao lado do realismo e conte com muita articulação política. Mesmo sob ameaças reiteradas do bolsonarismo – com sugestões golpistas envolvendo as FFAA –, observam-se crescentes sinais de que os brasileiros começam a se mover para enfrentar essa insensatez que, entre nós, acompanha o vírus, na sua senda de exaurimento da democracia e da Nação.

Alberto Aggio é professor titular de História da Unesp/Franca e presidente do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)

(Publicado em Política Democrática online, n. 20, junho de 2020, p. 30-32.


[1] Cf. Žižek, Slavoj. Virus. Milão, Ponte Alle Grazie, 2020; o texto de Ernesto Araujo está em https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus

[2] Innerarity, Daniel. Pandemocracia – una filosofia de la crisis del coronavirus. Barcelona: Galaxia Gutemberg, 2020.

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