Ilona Szabó de Carvalho: Democracia terminal

Desde o início do governo Bolsonaro o debate sobre a saúde da democracia brasileira se acirrou. Alguns cientistas políticos e autoridades, incluindo ministros do STF, dizem que o sistema de pesos e contrapesos das instituições e diferentes poderes do Estado está funcionando bem. Em geral, suas análises estão concentradas nos procedimentos legais que têm sido usados pelo Congresso, pelo Ministério Público Federal ou pelo Judiciário para frear os abusos cometidos pelo Executivo.

No entanto, há pontos cegos que não estão sendo levados em conta. Além disso, essa análise é limitada e não contempla o exercício pleno da democracia garantido na Constituição Federal. Pela ótica dos princípios fundamentais, direitos e garantias civis e sociais descritos nos artigos de 1 a 6, e da responsabilidade do presidente da República, detalhada no artigo 85 da Constituição, nossa democracia é um doente terminal.

Sustento três razões pelas quais é equivocado dizer que as instituições da República estão cumprindo bem o seu papel de salvaguarda democrática. O primeiro é que altos representantes do Poder Executivo têm implementado o desmonte sistemático e subvertido a razão de ser de instituições, com exonerações ou nomeações com propósito de calar, constranger ou expulsar os não alinhados e destruir políticas públicas estruturadas a duras penas.

O desmonte do Ibama, a nomeação de quadro que nega o racismo para comandar a Fundação Palmares, e os anti-ministros da Educação, Meio Ambiente, Direitos Humanos e Relações Exteriores são alguns exemplos da estratégia de acabar com a capacidade do Estado brasileiro em áreas-chave.

Em segundo lugar, instituições são feitas de gente e basta conversar para sabermos os desafios existenciais que enfrentam. Nos últimos meses entrevistei de forma confidencial dezenas de pessoas acerca dos impactos sobre a democracia das estratégias de fechamento do espaço cívico —esfera pública onde cidadãos se organizam, debatem e agem— utilizadas pelo governo Bolsonaro.

Na área governamental, falei com funcionários públicos e ocupantes de cargos de confiança de distintos ministérios e instituições de pesquisa, professores de universidades públicas, diplomatas, membros das Forças Armadas, entre outros. O quadro descrito é aterrador. As estratégias usadas para enquadrar ou se livrar dos não alinhados incluem censura, assédio, perseguição e intimidação, chantagem e até ameaças. Muitos se calaram, se licenciaram ou deixaram seus cargos.

O terceiro ponto é o chamado “jogo duro constitucional” —descrito por Fishkin e Pozen como manobras políticas que violam ou esticam em demasiado uma convenção constitucional, quebrando algo que antes era consenso. O abuso na emissão ou revogação de decretos, portarias e medidas provisórias é um dos exemplos. Bolsonaro assinou 537 decretos e 48 medidas provisórias em 2019, que geraram 30 ações no Supremo para questionar a constitucionalidade das normas no primeiro ano de mandato. Em comparação, Lula teve oito, Dilma, três, e Temer, duas.

Enquanto não são revertidos pelo Congresso ou pelos tribunais, os decretos ilegais entram em vigor. Isso cria insegurança jurídica e pode beneficiar grupos de lobby que, em geral, são aliados próximos do governo. O grande número de novas normas e decretos também torna mais difícil avaliar sua legalidade, como no caso dos decretos sobre armas. Muitas dessas mudanças e suas consequências ainda precisam ser detectadas e analisadas para compreendermos a dimensão das ilegalidades e poder contestá-las.

As instituições, e por conseguinte, a nossa democracia, não vão bem. Os que ainda têm poder de seguir com as investigações dos inúmeros possíveis crimes cometidos pelo presidente da República precisam fazê-lo com agilidade e esmero. Ao contrário, em breve, estarão desligando os aparelhos. (Folha de S. Paulo – 20/05/2020)

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

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