No mês em que o Brasil comemora 132 anos da Lei Áurea, a sociedade debate se o Enem deve ser adiado. É claro que fazer o exame logo depois da epidemia vai acirrar a brutal desigualdade de como a educação de base é oferecida, mesmo nos períodos normais.
Escolas privadas estão substituindo aulas presenciais por ensino a distância, com a mesma ou até melhor qualidade, desde que os alunos tenham os equipamentos necessários e contem com apoio de pais ou de professores particulares. Mas raríssimas escolas públicas conseguem se adaptar com a mesma rapidez ao uso dos métodos do ensino a distância e, dificilmente, seus alunos contam com celulares, tablets, notebooks ou com o apoio pedagógico familiar.
Por isso, é absurdo que o governo federal se recuse a adiar a realização do Enem para quando as escolas tiverem recuperado o tempo perdido. Felizmente, entidades estudantis e grupos preocupados com a educação estão lutando para forçar o adiamento do exame na tentativa de impedir o agravamento das consequências decorrentes da desigualdade de como a educação é oferecida às nossas crianças. Mas é lamentável que a sensibilidade à desigualdade só chame a atenção quando se trata do ingresso à universidade.
Os movimentos que agora defendem postergar o Enem por causa da epidemia ignoram que, há décadas, independentemente do coronavírus, o ingresso na universidade trata diferentemente os candidatos, conforme a renda da família. A desigualdade na qualidade de educação de base só é percebida quando se trata da entrada no ensino superior — é a desigualdade entre os que terminaram o ensino médio e se sentem em condições de disputar o vestibular ou o Enem.
Mais grave é a desigualdade que atinge os esquecidos que não terminam o ensino médio, abandonam a escola antes ou fazem um curso tão ruim, que não se atrevem a buscar vaga em faculdade. É preciso, portanto, barrar a maldade do governo ao impor um Enem da epidemia, mas as diferenças educacionais são antigas, não são culpa (ou apenas) da atual administração. É herança maldita de governos anteriores, inclusive os últimos democratas-progressistas, que geriram o país por 26 anos, e os da esquerda, por 13 anos.
Durante toda a nossa história, relegamos a qualidade média da educação. Cuidamos dela apenas para os filhos de poucos, abandonando os descendentes dos negros durante a escravidão e os filhos dos pobres depois da Abolição. E só descobrimos a desigualdade quando está em jogo o ingresso no ensino superior, mesmo assim, por seu agravamento durante o confinamento provocado pela epidemia.
Por 350 anos, os navios negreiros tinham marujos com ordem para não deixar os escravos pularem no mar durante o trajeto desde a África. Os traficantes sabiam que o suicídio de um escravo era prejuízo como jogar mercadoria ao mar. Depois do trajeto, quando um escravo se suicidava, os parentes eram punidos porque a morte representava descapitalização para o dono.
Nós não entendemos ainda que, ao abandonar a escola, o jovem está se suicidando socialmente e descapitalizando o país de seu potencial intelectual. Os traficantes de escravos não eram mais humanos e sensíveis do que nós, brasileiros republicanos, mas somos, igualmente, insensíveis e menos inteligentes.
Fechamos os olhos ao suicídio social de dezenas de milhões de brasileiros que saltam os muros da escola e ignoramos o prejuízo que isso provoca no país e na humanidade. O abandono escolar, como o salto ao mar dos escravos, decorre em parte da pobreza da família, exigindo que os filhos trabalhem, mas decorre, sobretudo, da má qualidade e da pouca atratividade da escola. A maior parte delas, como navios negreiros para o futuro.
Nossos constituintes sofreram dessa ignorância ao definirem que educação é um direito de cada brasileiro, mas não o vetor do progresso do Brasil. Por isso, lutamos contra o Enem neste momento, mas não para que a escola tenha a mesma qualidade, independentemente da renda da família. Por um lado, porque vemos a educação apenas como um direito, não como o vetor do progresso. Por outro, pelo elitismo de nossos movimentos sociais que se interessam pelo direito de quem terminou o ensino médio, mas não o direito dos que abandonarão a escola antes do vestibular ou do Enem.
A luta pelo adiamento do Enem deve ser apoiada, contudo, não basta: é preciso lembrar os que jamais farão vestibular, por nem sonharem com o ensino superior devido à má qualidade da educação de base que lhes foi oferecida. (Correio Braziliense – 19/05/2020)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)