Ainda é cedo para avaliar a gestão do novo ministro da Saúde, mas, por ter dito que está alinhado ao presidente, temos motivo para temer o fim da estratégia de confinamento para reduzir a disseminação do vírus e a pressão sobre a rede hospitalar. Talvez o dr. Teich tenha assumido postura de político tradicional e falou apenas para agradar ao presidente. Avalia que pode dizer isso e continuar fazendo o que o ex-ministro Mandetta, a OMS e a ciência recomendam.
Antes mesmo de assumir o cargo, Teich deu uma contribuição ao pensamento moral da sociedade brasileira com a afirmação absurda de que, na falta de leito no hospital, escolhe-se para sobreviver o doente jovem. Sua contribuição não está na justificativa disso, mas na explicitação de uma realidade imoral praticada todos os dias, com ou sem epidemia, e não só nos hospitais e na saúde, mas em todos os serviços sociais, com escolha não pela idade, mas pela renda.
Independentemente do coronavírus, quem entra nos melhores hospitais sem respeitar fila é quem pode pagar por ele, diretamente ou por meio de um bom seguro privado. Sendo um dos velhos que seria preterido, posso dizer que o critério indecente do ministro com base na idade não é mais desumano do que o critério baseado na renda. Talvez menos indecente porque, aos 76 anos, eu tive minha vida, o jovem não teve ainda. Mais imoral é a escolha do sobrevivente com base na sua riqueza. É por esse critério que há décadas deixamos morrer pessoas sem dinheiro para pagar médico e hospital, para ter água tratada e rede de esgoto em casa, comida suficiente na mesa. Não é por escolha dos médicos: o sistema social escolhe pela renda.
A seleção da sobrevivência pela renda ocorre desde o nascimento. O sistema social escolhe as crianças que morrerão na primeira infância por falta de comida, água limpa e saneamento; determina as crianças que terão atendimento e cuidado especial na primeira infância, nos primeiros mil dias que indicarão quase todo seu potencial futuro; seleciona quais entrarão em boas escolas e permanecerão nelas. Quais vão adquirir o conhecimento necessário para enfrentar os desafios da sobrevivência plena na competição do mundo moderno. A escola é o balão de oxigênio do cérebro e no Brasil ela seleciona os que se beneficiarão dela, tanto quanto no sistema privado de saúde.
O uso de critério de escolha de quem vai sobreviver no hospital foi feito muito antes de o coronavírus chegar. Apesar do esforço do SUS, a sobrevivência vem ocorrendo pela renda do doente, sob os olhares de todos que não queremos ver nem entender a triste realidade social brasileira. Ao falar da escolha por idade, o novo ministro explicita a imoralidade da escolha por renda. Com a desumanidade da lógica que apresentou, desnudou o desumanismo do nosso sistema social.
Indignados com a ideia desumana da seleção beneficiando jovens, toleramos a seleção que beneficia ricos, tanto na saúde quanto na moradia, no transporte, nas escolas. Não toleramos a preferência de leitos e respiradores para jovens, mas aceitamos com naturalidade a preferência para quem pode pagar por eles. Aceitamos também o privilégio comprado para o acesso a boas escolas, dando início a outras discriminações.
Seria bom se a frase do dr. Teich, carregada de desumanidade de negar leito hospitalar àqueles com muitos anos de vida, servisse para mostrar o desumanismo do sistema social que nega escolas de qualidade para os que têm pouco dinheiro e, em consequência, levarão a vida sem emprego de qualidade, sem renda e sem hospital, independentemente da idade. Aproveitemos a desumanidade na frase do ministro para descobrirmos o desumanismo geral no sistema social e no comportamento de cada um de nós: indignados com a indecência etária, mas aceitando a indecência monetária da medicina privada.
O Mapa da Desigualdade, elaborado pela Rede Nossa São Paulo e divulgado em novembro de 2019, mostrou que os habitantes de um bairro pobre em São Paulo vivem até 23 anos menos que moradores de um bairro de classe média. Ao reclamar da indecente hipótese do novo ministro, precisamos lembrar que os jovens negros das periferias de nossas cidades vivem menos que os habitantes dos bairros privilegiados. Todos os dias o sistema está escolhendo quem vai sobreviver plenamente e quem não vai: quem será analfabeto, desempregado, sem teto, sem água, sem saneamento, sem esperança, preterido nos hospitais quando precisa. A lógica Teich, na verdade, é a velha lógica do sistema. (Correio Braziliense – 23/04/2020)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)