Mudanças na percepção da crise são mais rápidas que capacidade do governo de entendê-las
Viver no mundo da fantasia pode ser uma delícia, até trombar com a realidade. Não importa o que o presidente brasileiro acha que seja a situação internacional e doméstica – se é uma fantasia induzida pela “grande imprensa” ou uma dura realidade de perdas econômicas graves. O fato é que também no Brasil a atmosfera política está contaminada pelo medo de recessão e da doença do coronavírus.
O presidente ignora o óbvio: é a percepção que importa, e a percepção crescente aqui e lá fora, que o gogó dele ou de qualquer outro não controla, é a de que não vem coisa boa por aí. Essa percepção foi extraordinariamente exacerbada pelo famoso imponderável, aquele fator na política que nunca se sabe qual será, a não ser que acontecerá. É o caso da atual crise internacional, que muitos analistas previam, corretamente, que seria decorrência de fatores geopolíticos (neste episódio, não foram guerras, mas coronavírus e petróleo).
É o imponderável que torna tão arriscado qualquer tipo de aposta contra o tempo, e foi exatamente a aposta feita pelo governo Bolsonaro e seu time de economia, que conta com algumas das melhores cabeças técnicas do setor, mas enfrenta dificuldades imensas com a política (que mal compreende ou não sabe operar). A aposta foi muito semelhante à de outra boa equipe de economia, a de Temer: a de que o tempo traria uma melhora sensível na economia e, em decorrência, um ambiente propício a discussão e aprovação de reformas estruturais.
Neste ponto é razoavelmente seguro afirmar que também a aposta atual não está dando certo. A pressão política, em sentido amplo, criada por esse difuso mas amplo sentimento de “coisa boa não vem por aí” contamina o comportamento de todos os atores relevantes. Vozes influentes no Congresso abraçaram o discurso do “social” e pretendem que o governo adote políticas de estímulo frente ao desempenho da economia. Desempenho que Paulo Guedes tem razão de chamar de “normal” diante do declinante PIB potencial brasileiro, mas está longe do desejável – portanto, de atender às questões sociais.
A resposta do governo veio por meio de um ofício ao Congresso enumerando um catálogo formidável de medidas encaminhadas ou que serão brevemente submetidas ao Legislativo, apontado pelo Executivo como o grande bloqueador das reformas necessárias para destravar a economia. A pressão aumentando explica em parte o rompante de chamar “o povo” às ruas (a fantasia do mito) e denunciar “fraudes” (a fantasia da manipulação das urnas eletrônicas) – ações que ajudam a aumentar a pressão.
Olhando o grande quadro, é deprimente constatar que o País permanece longe de se livrar de um dilema que piorou nos últimos anos: como gastar e investir, melhorar a produtividade, enfrentar os graves problemas sociais e, ao mesmo tempo, não perder a âncora fiscal? O ceticismo que pauta o comportamento de diversos agentes nos setores de política e economia se prende a um raciocínio simples: a situação fiscal dos entes da Federação brasileira só vai piorar com a previsível queda de arrecadação trazida pela situação atual e a daí resultante necessidade iminente do Executivo de ter de contingenciar o Orçamento.
O que só deve tornar mais ácido ainda o panorama político, pois é bastante razoável assumir que o governo, para preservar confiança em geral e fiel aos postulados da equipe econômica, vai ter de cortar ainda mais quando a gritaria (legítima e bem fundamentada ou não) é para gastar. Voltando a falar do tempo, ele trabalha contra, e não a favor do governo Bolsonaro, surpreendido pelo imponderável. E enredado nas próprias fantasias. (O Estado de S. Paulo – 12/03/2020)