Maria Cristina Fernandes: Os confetes da crise

O apoio a motins policiais e a manifestações de afronta ao Congresso tem todos os ingredientes para radicalizar o presente e comprometer o futuro deste governo. Uma adensada reação política à escalada autoritária dificultaria a recomposição com a qual se busca redirecionar as bases deste governo a partir das eleições municipais e, assim, esvaziar as alternativas ao centro. Não há, contudo, indicações de que este virá a ser o desfecho da crise.

As primeiras reações ao vídeo compartilhado pelo presidente de convocação a manifestações contra o Congresso indicavam que Jair Bolsonaro havia cavado sua própria cova. Se as digitais bolsonaristas nos motins policiais deixaram Ciro Gomes na condição de Rei Momo da reação, a convocação bolsonarista adensou-a ao centro com o tuíte do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre os riscos em curso (“crise institucional de gravíssimas consequências”) e o repúdio do decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello (“se confirmado, indica um presidente que não está a altura do altíssimo cargo que exerce”).

A amena reação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (“as autoridades da República devem dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”), porém, indicou o acordo a caminho para derrubar o veto. O governo listaria seus projetos mais importantes e os parlamentares interessados em serem co-patrocinadores dessas obras lhes destinariam recursos de suas emendas. Não seria o primeiro acordo do gênero. O risco, desta vez, é que uma iniciativa dessas pressupõe confiança mútua, mercadoria em falta num governo em que ministros e presidente da República inauguram obras sem a presença de parlamentares que as viabilizaram.

Ainda que a manifestação do dia 15 não leve multidões às ruas, como aquelas que, no Carnaval, fizeram coro contra o presidente da República, o momento é propício ao acordo. Se, de um lado, há indícios de que o presidente ultrapassou os limites da responsabilidade de seu cargo, de outro os parlamentares sabem da impopularidade representada pelos R$ 31 bilhões em emendas parlamentares. O jogo ainda está muito longe daquele que emparedou a ex-presidente Dilma Rousseff.

O Congresso teria uma oportunidade, com as reformas administrativa e tributária, de fazer a lição de casa, mas são os governadores que têm demonstrado mais ousadia. Depois de 20 deles darem a cara a bater na carta inédita em que alertam contra ameaças à democracia, três governadores de partidos diferentes (PSB, PT e PSDB) – Paulo Câmara (PE), Camilo Santana (CE), Eduardo Leite (RS) – e uma vice governadora – Eliane Aquino (SE) – assinaram juntos artigo em ‘O Globo’, no domingo de Carnaval, em que se dizem favoráveis a mudanças no paradigma do serviço público, inspiradas em Cingapura e mais pautadas pela excelência no atendimento à população do que no corporativismo.

O Congresso tende a manter em banho-maria representações contra um senador da República (Flávio Bolsonaro) de longevas relações com milícias ou contra um deputado (Eduardo Bolsonaro) que acusa um senador, baleado por PMs, de ter sido unicamente vitimado pela falta de inteligência.

Os filhos são as balas de prata do esgarçamento institucional. Até lá, tem muita munição a ser gasta. Um alvo é o ministro da Economia. O desvario de Paulo Guedes contra os parasitas e as domésticas é visto como sintoma de equívocos incontornáveis. Ao apostar tudo na queda de juros e no arrocho fiscal vai levar o país a mais um ano de crescimento medíocre. Some-se o impacto do coronavírus na balança comercial e a saída recorde de dólares, o óleo de Guedes chega ao ponto de fritura.

Interessa muito mais ao Congresso substituir Guedes do que o inquilino do Planalto. De um lado, o presidente recuou ao dizer que mensagens de WhatsApp para “algumas dezenas de amigos” têm “cunho pessoal” e mandou sua turma tirar o pé do dia 15. Do outro, o Congresso aperfeiçoou seus meios para tirar proveito de mais esta crise. Vale-se da grande expertise adquirida no tema nos últimos anos e que chega, com a ‘nova política’, ao seu ápice.

Se o bolsonarismo tem método, o Congresso também tem o seu. No dialeto parlamentar, o samba da mangueira (“não tem futuro sem partilha”) se traduz assim: o presidente da República terá futuro se e quando repartir o bom e velho butim.

Messias de arma na mão

Das 27 unidades da Federação, quatro têm militares do Exército no comando da Secretaria de Segurança Pública. Dois são coronéis e os generais Camilo Campos, em São Paulo, e Mario Araújo, em Minas, todos da reserva. Reproduzem o arranjo na Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça, mais uma vez ocupada por um general (Guilherme Theophilo) e do Rio de Janeiro sob intervenção militar.

Candidato derrotado a deputado federal pelo PSL, o general Araújo foi um dos artífices do acordo que propôs um aumento de 41% aos policiais militares de Minas. O acordo é um dos fios desencapados da tensão que mantém o Ceará há uma semana sob motim. Policiais de todo o Brasil hoje reivindicam isonomia com os mineiros.

Ao patrocinar o aumento dos PMs, que colocou um ponto de interrogação na já delicada solvência do governo de Minas, o general mineiro seguiu a escola da tramitação do projeto de reestruturação da carreira militar. Para ser aprovado com apoio da bancada da bala, com um custo fiscal de R$ 9 bilhões, o projeto deu carona a todas as demandas de PMs. A negociação contaminou a nação.

Não é à toa que o general Araújo aparece ao lado do vice-presidente Hamilton Mourão, do deputado federal Roberto Peternelli (PSL-SP), e do ministro do GSI, Augusto Heleno, num dos panfletos convocatórios da manifestação do dia 15: “Os generais aguardam as ordens do povo”. Peternelli não autorizou o uso de sua foto mas não se ausentará da manifestação que abrigará sua base eleitoral.

Generais não admitem que as Forças Armadas sejam contaminadas por um governo que encheu o Palácio do Planalto de militares quatro estrelas, ainda que ativa e reserva montem juntos quase todas as manhãs na Cavalaria do Exército em Brasília. Sua disciplina não admite motins que afrontam a Constituição, mas foi sob sua coabitação, em escalões militares e civis, que se espraiou a ordem policial de que sempre cabe um gasto a mais quando se tem uma arma na mão. (Valor Econômico – 27/02/2020)

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