Em defesa da Constituição, da Democracia e da Liberdade!
A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. (Palmas.) Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (Muito bem! Palmas.) Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. (Muito bem! Palmas.) A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Muito bem! Palmas prolongadas)
Ulysses Guimarães
Transcrição do seu discurso feito durante a Promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988
Rasgar a Constituição é abrir a tumba da democracia. É enterrar a liberdade. É calar a voz do Parlamento – expressão real e atual da consciência popular. É destruir a harmonia e a independência entre os três Poderes. É permitir a emergência de dois tristes crepúsculos: um que anuncia o fim da democracia e outro que anuncia o princípio da ditadura. É destruir a razão e dar vida à irracionalidade. É instigar ódios, intolerâncias, preconceitos e a divisão entre os brasileiros. É propagar as trevas do obscurantismo, do autoritarismo, do totalitarismo. É passar o recibo que não sabe governar em democracia, com a democracia e para a democracia. É o menosprezo aos partidos, ao diálogo, ao pluralismo, ao voto, ao povo. É o aborto das inovações democráticas. É a abertura dos portões infernais onde se vê as assustadoras e sombrias continuações da morte da democracia. É o extermínio da cidadania. É o punhal dilacerando o coração da civilização. É o assassinato do Estado democrático de direito.
Caso se confirme que o presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, partilhou mensagens por Whatsapp, nesta terça (25/02/020), convocando para uma manifestação no dia 15 de março de apoio ao Governo e a favor do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, fere o Inciso II do Artigo 85 da Constituição Federal – que, aliás, jurou, perante a Nação, a defender.
Diz a Carta Magna:
“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.
O presidente rasgou também o Artigo 78 da Constituição, que expressa os termos do juramento constitucional feito por ele em 1° de janeiro de 2019, quando assumiu a Presidência da República, a saber:
“Manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”.
As mensagens que circularam convocando o ato de 15 de março (lembrem-se de 31 de março de 1964!) traz fotos dos generais Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Hamilton Mourão, vice-presidente com os dizeres: “Vamos às ruas em massa. Os generais aguardam as ordens do povo. Fora Maia e Alcolumbre”.
O estrago inconstitucional suscitou, inclusive, uma fratura exposta dentro do próprio Exército. O ex-ministro da Secretaria do Governo Bolsonaro, General Santos Cruz, condenou o banner que sugere o apoio total do Exército ao ato golpista. Santos Cruz partilhou aquela imagem e escreveu em seu twitter:
“IRRESPONSABILIDADE Exército Brasileiro – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população.”.
Tanto os civis ou militares ou governantes (ou quem quer que seja) que convocam as manifestações para o dia 15 de março para violentar as instituições da República (Parlamento e Judiciário), violentam mais ampla e duramente a ordem democrática e constitucional. Isso é crime expresso pelo Inciso XLIV do Artigo 5° da Constituição Federal, a saber:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;”.
É a manifestação de um governo fraco que, para governar, prefere a política da força a força da política; a raiva à inteligência; a subserviência estéril à reflexão crítico-criadora; a beligerância à diplomacia; o mandonismo ao diálogo; o fuzil ao livro; a truculência à negociação; o messianismo às instituições democráticas; a digitação no twitter ao diálogo com o parlamento; as trevas do autoritarismo à luz da democracia e liberdade.
O uso da força é manifestação da fraqueza de um governo isolado, que tende a tornar-se vácuo; expressão essa que, paradoxalmente, “preenche” o “cérebro governativo”.
O verdadeiro piloto da democracia é o povo. A urna é seu navio. A consciência é sua bússola. O parlamento é a expressão média de sua vontade.
A convocação para o ato do dia 15 escancara o que é e o que ele deseja: é um crime premeditado, um passo rumo à criação de uma crise político-institucional, o forno onde se assa o golpe contra o Estado democrático de direito. É preciso barrá-lo e se isso não for possível, é necessário responsabilizar seus idealizadores, apoiadores e divulgadores do golpe contra a democracia e à República! Abertura de processo de cassação de mandatários golpistas e, se confirmada a participação do presidente da República, a abertura de processo de impeachment.
Nas eleições presidenciais de 2018, o povo brasileiro elegeu um presidente da República; não um imperador. Elegeu um Congresso Nacional, não um “puxandinho” do Executivo. Revelam-se aí, mais uma vez, o anacronismo desestabilizador do presidencialismo e a sinalização da necessidade de o país avançar para o Parlamentarismo. Mas isso é outra história.
Aquele que, eleito em regime democrático, não quer governar seguindo suas regras, ou respeita a Constituição ou deve sair. O Brasil não pode e não deve nunca mais aceitar golpes, quarteladas e ditaduras de qualquer natureza.
A Constituição Cidadã representou na história brasileira um gigantesco passo em direção à democracia política, à cidadania e à construção de um efetivo estado democrático de direito. A Carta de 88 foi soldada pela luta, voz e negociação dos atores da sociedade civil organizada com o parlamento constituinte. Ela assegurou, pela via democrática e pacífica, a institucionalização de diversos direitos políticos, civis e garantias individuais e coletivas.
Há que se reconhecer: os avanços democráticos político-institucionais não tiveram como companhia (na mesma envergadura, densidade e velocidade) os necessários e inadiáveis avanços econômicos e sociais. Em trinta e um anos de democracia, é verdade, ainda há muitos problemas para superar e déficits sociais e econômicos crônicos para eliminar.
Contudo, os problemas da democracia e da liberdade se resolvem com mais democracia e com mais liberdade – dentro das regras democráticas.
Diante desse ato acintoso – que necessita de uma dura resposta constitucional por parte das forças democráticas – é preciso extrair dele alguma coisa de útil.
É preciso que essas mesmas forças, vendo o “ovo da serpente” em gestação no Planalto, partam rumo à direção de um pacto político democrático-social de desenvolvimento de longo alcance histórico para extirpar as bases sociais que dão calor e vida a ninhos produtores de carrascos da democracia.
Um pacto que, diante de um Brasil absurdamente desigual e perigosamente fértil às tendências golpistas e autoritárias, construa um pacto político democrático-social de desenvolvimento, cujos contornos construídos democraticamente podem tornar-se uma força gravitacional para a qual convergem as diversas tradições político-culturais democráticas, republicanas, pluralistas, reformistas, laicas, seculares, feministas, civilizatórias, progressistas, humanistas expressas e dispersas nos protagonismos de comunistas de natureza democrática, socialdemocratas, liberal-democratas, libertários, religiosos progressistas, ambientalistas, pacifistas e defensores da beleza da diversidade humana – todos dispersos em diversos partidos, organizações da sociedade civil e coração da cidadania brasileira.
Um pacto histórico capaz de, num primeiro momento, impedir o golpe, defender e preservar o Estado democrático de direito, anular e superar tendências golpistas, retrógadas, reacionárias, conservadoras, populistas, xenófobas, racistas, plurifundamentalistas, financistas, antiambientalistas e belicistas.
E, num segundo, caminhar definitivamente na superação das causas e os efeitos do secular modelo concentrador e centralizador de renda, riqueza e saber em favor da minoria em detrimento da maioria e, ainda, reorientar a nossa economia no sentido do crescimento, distribuição de renda, sustentabilidade, desenvolvimento das forças produtivas, uma maior inserção do país no mercado externo com o fortalecimento do mercado interno e, através de resultados concretos favoráveis e sentidos pela cidadania em luta, reacender as esperanças de renovação política, econômica, social, moral e cultural do povo brasileiro.
Em defesa da Constituição!
Viva a Democracia!
Viva a Liberdade!
Golpes e ditaduras, nunca mais!
Eduardo Rocha, economista