Em sua coluna na Folha, na semana passada, Anderson França criticou de maneira contundente artistas populares que não tomaram posição contra o ex-secretário da Cultura Roberto Alvim.
O artigo ressalvava que artistas como Zélia Duncan, Marcelo D2 e Pedro Cardoso tinham corajosamente marcado posição, mas artistas de origem pobre, como Anitta, Maiara e Maraisa e Whindersson Nunes, tinham se calado, talvez com medo de perder contratos de publicidade. França foi ainda mais longe e incluiu uma ilustração de Maiara e Maraisa com uma braçadeira nazista, sugerindo que esses artistas não eram apenas inconsequentes como tinham efetivamente aderido à barbárie. Como diz o ditado, quem se cala contra o nazismo também é nazista.
O artigo teve enorme repercussão, com mais de 16 mil interações no Facebook. Fãs dos artistas criticados reagiram indignados. A ilustração de Maiara e Maraisa foi retirada do site da Folha, acompanhada de um pedido de desculpas do jornal.
Nos círculos de esquerda, porém, o artigo foi celebrado e amplamente compartilhado. Essa reação merece ser analisada porque embora os progressistas reconheçam a gravidade do momento, parecem desconhecer o processo que levou até ele.
Bolsonaro não foi eleito porque compartilhou notícias falsas nem porque teve o apoio de empresários do varejo. Bolsonaro foi eleito porque sua candidatura articulou dois movimentos da sociedade brasileira, a grande insatisfação anticorrupção, originalmente voltada contra a esquerda, e o conservadorismo religioso que via no feminismo e no movimento LGBT uma ameaça à família tradicional.
Essa articulação só foi possível porque esses dois discursos têm em comum um caráter anti-elitista: contra uma elite política que estaria saqueando o Estado e contra uma elite cultural arrogante e perversa que tentaria destruir a família tradicional.
O artigo de França parece movido pela justa indignação contra o silêncio conveniente de grandes artistas que não querem tomar partido porque têm medo de perder audiência num país polarizado. Mas ao traçar uma distinção entre os artistas engajados e politizados da classe média e um suposto protofascismo dos artistas populares, o discurso involuntariamente confirma a pecha de elitista que Bolsonaro vem tentando colar na esquerda progressista.
Quando mais urgentemente necessitamos convocar os artistas populares para se unirem numa cruzada contra esse governo autoritário e conservador, tudo o que conseguimos fazer é agredi-los e empurrá-los com força para o campo do adversário. (Folha de S. Paulo – 28/01/2020)
Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia