Cristovam Buarque: Nós falhamos

Ex-senador faz autocrítica. ‘Não demos rumo ao Brasil’. Progressismo se perdeu em utopia

Durante 26 anos, a República brasileira teve 5 presidentes de um mesmo bloco político. Apesar de partidos, ideologias e comportamentos diferentes, Itamar, Cardoso, Lula, Dilma e Temer vêm do mesmo grupo que lutou contra a ditadura e defendeu posições progressistas, em graus diferentes, na economia, na sociedade e nos costumes.

Foi, portanto, 1/4 de século e de República governado por democratas-progressistas. Nesse período recuperamos a estabilidade da moeda, criamos Bolsa Escola, Bolsa Família, Mais Médicos e Minha Casa Minha Vida, tivemos uma política externa independente e presente, mas não fizemos as transformações que o Brasil necessita e que a história esperava de nós.

A observação do Brasil que deixamos em 2018 demonstra que falhamos política e estruturalmente. Não demos coesão nem rumo ao Brasil. Basta olhar ao redor para ver que deixamos nosso país com 12 milhões de adultos analfabetos e 100 milhões sem saneamento, a população igualmente pobre e a renda igualmente concentrada; estamos nas últimas posições no Pisa e muito aquém do que deveríamos no IDH.

Deixamos a economia em recessão alarmante, e com desemprego em níveis dramáticos.

No nosso período, o País ficou mais radicalizado, violento e corrupto. Com menos coesão social e política e sem um rumo histórico. O Estado ficou mais ineficiente, aparelhado e endividado. Nós falhamos no propósito de mudar e dar uma nova direção para o futuro de nosso país e de nosso povo. Falhamos também politicamente ao levar os eleitores a escolher 1 governo diametralmente oposto ao que nós representávamos.

Falhamos e continuamos falhando ao não entendermos que falhamos, ao nos recusarmos a fazer uma autocrítica, condição preliminar para voltarmos a nos apresentar ao povo como uma alternativa progressista. Precisamos entender quais foram nossos erros.

O primeiro foi chegar ao poder como progressistas e nos acomodarmos como democratas conservadores. Ficamos 26 anos consolidando a democracia, sem reorientar o país nos novos tempos que vivemos. Não corrigimos as falhas do passado, nem apontamos ao novo progresso. Não entendemos que depois da “curva da história” nas últimas décadas, as ideias antigas já não servem.

A geopolítica e o comércio ficaram globais, a ciência e a tecnologia fizeram a robótica e a inteligência artificial, as mudanças climáticas definiram limites para o crescimento econômico, a democracia nacional deixou de dar resposta aos problemas que ficaram planetários, a pirâmide etária se inverteu, o Estado se esgotou moral, financeira e gerencialmente. Mas ignorando as mudanças na realidade, nós insistimos nas velhas ideias e nos velhos hábitos sobre como enfrentar o problema da pobreza, da desigualdade, do desenvolvimento.

Não entendemos que a justiça social exige economia eficiente. Que no tempo da economia do conhecimento, o aumento de produtividade, inovação e competitividade dependem da educação de qualidade para todos. Que deixar cada criança para trás é deixar o Brasil para trás. Continuamos tratando educação como um direito de cada brasileiro, e não como o vetor do progresso de todos.

Falhamos ao não entender que a bandeira progressista de hoje não está mais na ideia de a economia rica educar o povo, mas na educação de qualidade fazer a economia rica. Não vimos que as transformações sociais virão da equidade no acesso à educação de base.

Não percebemos que a “utopia” dos progressistas de hoje deve ser construir coesão nacional para executar uma estratégia que em algumas décadas o Brasil tenha uma educação com a qualidade das melhores do mundo e todas nossas escolas com a mesma qualidade, independente da renda e do endereço da família de seus alunos.

Falhamos por não termos a ousadia de propor o caminho para construir responsavelmente um país onde os filhos dos pobres estudem em escolas com a mesma qualidade dos filhos dos ricos. Preferimos vender a ilusão de que os filhos dos pobres ingressarão nas universidades mesmo sem acesso a uma boa educação de base.

Falhamos porque ficamos sem bandeira que nos diferenciasse. Não apenas perdemos uma eleição: fomos para casa sem deixar uma bandeira fincada. Por isso, deixamos o povo e a juventude sem esperança, apenas desencanto com o futuro e nostalgia de algumas narrativas.

Falhamos ao acreditar que eram verdadeiras as falsas narrativas que os marqueteiros inventaram para o que teriam sido realizações nossas. Falhamos ao cair na corrupção para pagar os marqueteiros, financiar campanhas e até enriquecimento pessoal.

Ao lado da falta de uma bandeira utópica, possível, responsável, a corrupção foi a maior de nossas falhas: privataria, mensalão, petrolão são vocábulos de nosso tempo no poder. Não apenas na corrupção do comportamento, também a corrupção nas prioridades dos estádios antes das escolas, das obras inacabadas; a corrupção das mordomias e privilégios que ampliamos em vez de eliminar.

Mas estas falhas talvez não tivessem acontecido se não fosse a trágica falha de termos cooptado os intelectuais e universitários em siglas partidárias. Nossos intelectuais silenciaram na crítica à corrupção, seja no comportamento dos nossos políticos corruptos, seja de nossas prioridades.

Prisioneiros de velhos esquemas teóricos, não foram capazes, nem tiveram interesse nem ousadia para radicalizar na formulação de um novo rumo para o Brasil. Pelo erro de cooptar os intelectuais, pagamos um alto preço de não contar com a crítica do presente, nem com novas ideias para o futuro. O que o stalinismo fez com o uso da força, nós fizemos pelo aparelhamento de nossa inteligência.

Esta foi uma das causas de termos ficado contra todas as reformas. Fomos eleitos para reformar o Brasil e ficamos contra as reformas. Não reformamos o Estado mordômico do Brasil: aumentamos o número de carros oficiais e de privilégios da cúpula no poder; não reformamos a política, ao contrário, nadamos nela como peixe na água, sem disfarçar a desfaçatez.

Na economia, demos o passo certo de adotar a responsabilidade fiscal, mesmo assim deixamos de respeitá-la com o uso de truques contábeis e “pedaladas”. Nenhuma reforma fizemos no sistema financeiro e bancário; não reformamos o injusto, complicado e vulnerável sistema fiscal; mantivemos a maior carga fiscal e os piores serviços públicos da história; não tocamos no complicado e comprável sistema de justiça.

Nós falhamos ao longo de 26 anos e continuamos falhando por não querermos entender que falhamos. A mesma arrogância que tivemos no poder, com narrativas falsas, mostramos agora ao ignorar o recado que o eleitor nos deu. Como se ele, o eleitor, tivesse falhado, não nós. Mas, nós falhamos. (Poder 360 – 10/01/2020)

Cristovam Buarque, ex-senador (Cidadania-DF), professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)

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