Só se avalia o bem que representa respirar o ar da liberdade quando se perde tal possibilidade
Todo começo de ano, a mesma ladainha: feliz Ano Novo! É difícil escapar do lugar comum e não pretendo dele me afastar (pelo menos neste início de janeiro). Tenho boas razões para manter certo otimismo, pois chego aos quase 90 anos — que cumprirei no próximo ano se os fados assim dispuserem — mantendo o bem-estar, o que supõe certa autonomia pessoal. E posso dizer, sem arrogância, que me sinto mais livre, mais à vontade, para dizer o que penso e o que me emociona. Já não serão amarras ideológicas ou partidárias que irão frear meus impulsos. Por certo, a família sempre há que se tomar em consideração; assim como também os amigos. Quanto aos demais, importam, mas não tanto como a família ou os amigos.
Dito isso, justifico meu otimismo relativo. Nasci em 1931 em um Brasil mais pobre (nasci no Rio e lá vivi até aos 9 anos). Era comum ver nas cidades pessoas usando tamancos, nos campos havia medo dos bichos-de-pé, o analfabetismo no país era avassalador, as classes médias altas compravam manteigas e queijos, bem como uvas e muitas outras gulodices mais, importados.
Automóveis usava quem os tinha: os ricos — e olhe lá — ou então os altos burocratas. O comum dos mortais usava o bonde. No Rio havia um reboque em cada bonde, chamado “taioba”, com passagem mais barata. Em São Paulo havia os “camarões”, mais fechados, e também havia o bonde duplo comum. Para ir a São Paulo (cidade para a qual vim em 1940), ou ir de lá ao Rio, usava-se mais frequentemente os trens, também com categorias de primeira e segunda classe. A grande renovação foi a chegada das “litorinas” (comboios menores e mais ágeis) cujo percurso — diurno — durava cerca de oito horas, enquanto os trens requeriam 12. Avião era para os valentes e milionários… De carro, quem podia, dividia a longa viagem de 12 a 14 horas ou mais e se alojava no meio do caminho em um hotel ou em alguma fazenda de parente ou amigo. No verão chovia sem parar, tornando um lamaçal os trechos de terra do que veio a se chamar a “Via Dutra”. E era via de pista única, com mão para ir, outra para voltar.
De lá para hoje as mudanças foram enormes. Tornamo-nos uma das dez maiores economias do mundo (embora na rabeira delas). A economia se industrializou, e a de serviços cresceu. A agricultura e a mineração brilharam. O país se urbanizou: mais de dois terços da população vivem em cidades (ou em suas muitas periferias pobres). O analfabetismo não chega a abranger 7% da população maior de 15 anos e vem caindo há alguns anos. Universidades (pelo menos no nome) o país as tem às dezenas, e olha que as primeiras foram criadas nos anos 1930, embora houvesse antes escolas isoladas mais antigas. E o SUS, Serviço Único de Saúde, por mais que seja criticado nas cenas em que as tevês mostram filas enormes, é uma realidade de dar inveja a muitos povos: o atendimento é universal e gratuito. Antes só eram acolhidos nos hospitais os membros de alguma categoria profissional ou os que batiam às portas das Santas Casas de Misericórdia. Naturalmente, os mais ricos pagavam e tinham atendimento melhor, mesmo no passado.
E temos democracia. Só se avalia o bem que representa respirar o ar da liberdade quando se perde tal possibilidade. Quem, como em meu caso, viu o país viver com ditaduras ou autoritarismos durante cerca de 25 anos, intermitentes, sabe que respirar a liberdade é algo essencial. O estudo e a prática profissional no exterior, bem como o exílio, me ensinaram a respeitar as instituições que provêm e garantem as liberdades individuais e os direitos, das pessoas e coletivos. Desejo, portanto, que continuemos a desfrutar da liberdade e da democracia.
Há mais, contudo. Escrevi que no passado a maioria das pessoas tinha piores condições de existência. Muitos ainda as têm. O modo para melhorar esta situação é conhecido: crescimento da economia e políticas públicas que levem a maior igualdade. Crescimento razoável e contínuo. Ficaram no passado as taxas de 7% e 8% ao ano de crescimento do PIB. Quanto mais amadurece uma economia, menores são as taxas médias de crescimento. Mas almejar crescer 4% ao ano durante uma década (e daí por diante) é possível e necessário. E não suficiente: também é preciso redistribuir a renda, oferecendo mais educação, saúde, emprego e o que seja necessário para a sobrevivência dos despossuídos (mesmo bolsas, para evitar tragédias). E também mudar as regras de tributação, não só para simplificá-las, mas para que elas pesem mais sobre quem mais pode e menos nos que mal conseguem consumir o necessário para sobreviver.
É neste ponto que o carro pega. O futuro de um país se joga com sonho e ação. Se olharmos para trás veremos que o sonho se esvaeceu. Persiste, mas é menos nítido na imaginação das pessoas. A rotina pesa mais que a vontade de mudar, de construir um futuro melhor para todos. É o que desejo para 2020 e para daí em adiante: que voltemos a sonhar. Tenhamos mais grandeza, não no sentido da arrogância, mas da fé em nosso destino nacional. Precisamos de maior coesão e menos diferenças entre “nós” e “eles”, sejam quais forem os “nós” e os “eles”. Para tanto precisamos diminuir as desigualdades: elas começam no berço, mas se consolidam na pré-escola e no ensino fundamental. Daí por diante, nem falar…
E não devemos perder de vista que vivemos em uma civilização científica-tecnológica. A batalha do futuro se dará no campo da educação e da cidadania. É preciso que estejamos “conectados”, sem perder os valores básicos: precisamos utilizar a razão e saber que ela, sem sentimento, torna-se mecânica, autocrata. Desejo que 2020 aumente a consciência de que podemos melhorar. Para isso, deveremos estar juntos. A melhoria de um, quando prejudica o outro, desfaz a base que precisamos prezar: nossa coesão como pessoas que vivem na mesma comunidade nacional.
Bom Ano Novo, com emprego, prosperidade, mais igualdade e cidadania. (O Globo – 05/01/2020)