William Waack: Capitalismo político

A modernidade do choque no Brasil entre economia ‘liberal’ e autoritarismo político

O debate se a Lava Jato destruiu empresas e empregos ou se salvou a “ética” que permite o funcionamento virtuoso de instituições públicas e privadas revela um aspecto mais profundo das relações que organizam o funcionamento da economia brasileira. Na verdade, a pergunta levantada pela Lava Jato é outra. É o grau de aproximação do Brasil com o chamado “capitalismo político”.

O termo não é novo, mas voltou à moda devido ao sucesso do livro Capitalism, Alone (assim mesmo, com vírgula), de Blanko Milanovic, um intelectual de origem iugoslava atualmente na City University de Nova York e com longa passagem por instituições multilaterais como o Banco Mundial – experiência que o ajudou a escrever outra obra recente de sucesso, sobre o desequilíbrio global. A tese central dele é a de que pela primeira vez na História da humanidade um só sistema econômico prevalece – o capitalismo – e a ele pertence o futuro. Mas a qual capitalismo?

O tipo que se revela de grande êxito é o “capitalismo político”, em oposição ao capitalismo liberal meritocrático. Seus grandes expoentes são China, Rússia, Índia e vários asiáticos e, entre suas características principais, segundo Milanovic, destacam-se a ausência da aplicação uniforme das regras legais e a imensa autonomia do Estado. Nesse modelo, prossegue o autor, não são as elites econômicas que tomam as decisões em função de seus interesses, mas uma elite política que as coopta e as dirige em função de seus objetivos políticos – o paralelo com o PT e os “campeões nacionais” é evidente.

A corrupção num sistema desses é endêmica, pois os códigos legais são usados para favorecer amigos ou punir inimigos. Nesse sentido, a Lava Jato revelou as entranhas do “capitalismo político” à brasileira, incluindo o entusiasmo com que elites empresariais abraçaram o programa de um partido político que parecia haver encontrado no favorecimento de setores da economia a chave para se perpetuar no poder. Ao destruir o esquema petista, a Lava Jato afastou o Brasil do “capitalismo político”?

As elites empresariais empolgadas com os aspectos “liberais meritocráticos” dos planos da equipe de Paulo Guedes e, ao mesmo tempo, entusiásticas apoiadoras de Sérgio Moro e do que ele significa ainda não se deram conta totalmente de que os dois “modelos” estão em choque. Parte fundamental do embate entre setores do STF e expoentes da Lava Jato, por exemplo, se dá em torno do controle de quem investiga, dos limites de quem pune – por último, de quem controla a esfera da política.

Hoje empresários honestos temem mais a Receita Federal do que os homens vestidos de preto de Curitiba, sem perceber que a margem de ação que se atribuíram órgãos investigativos é uma demonstração da autonomia do Estado e de corporações que dele se apropriaram (como o alto funcionalismo público, entendido como elite política também). Não são grupos que aplaudem o “capitalismo meritocrático”. Seu viés ideológico, ainda que não petista, é claramente da permanência do controle do Estado sobre a iniciativa privada.

A empolgação (justa e legítima, importante assinalar) de elites econômicas pelo binômio Guedes-Moro turva a percepção básica de que o capitalismo meritocrático, ao contrário do capitalismo político, depende da aplicação estrita da “rule of law” (aqui o STF tem dado péssimo exemplo). São elites que olham para a eficiência administrativa de regimes sob o capitalismo político (como a China) e sonham com um grau de autoritarismo que permita destravar os óbvios obstáculos à expansão da economia brasileira, muitos deles localizados num Estado balofo e perdulário.

Milanovic sugere que o capitalismo político tem mais chances de sobrevivência. Nesse sentido, com forte dose de ironia, o Brasil está abraçando a modernidade. (O Estado de S.Paulo – 19/12/2019)

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