Yuval Noah Harari: Não sou Guru

Em vez de querer suas ideias multiplicadas como verdades, Yuval Noah Harari nos ajuda a enxergar as perguntas que devem ser feitas e nos incentiva a ir atrás das respostas

POR JULIA FURRER 17.12.2019 TRIP #285

Há menos de uma década, Yuval Noah Harari era apenas um bem conceituado, mas desconhecido professor de história da Universidade Hebraica de Jerusalém, que passava boa parte de seu tempo escrevendo artigos acadêmicos sobre as Cruzadas. Tudo mudou em 2011, quando ele se propôs um ambicioso desafio: resumir 70 mil anos da história da humanidade em 300 páginas e responder ao público leigo, com linguagem acessível, de onde viemos e o que nos trouxe até aqui. O resultado dessa sua cruzada pessoal, Sapiens – Uma breve história da humanidade, foi traduzido para 45 idiomas e tornou-se um dos livros mais vendidos do mundo. Harari ficou famoso, escreveu outros dois livros igualmente bem-sucedidos – Homo Deus: uma breve história sobre o amanhã e 21 lições para o século 21 –, que, com o primeiro, ultrapassaram a marca de 20 milhões de cópias vendidas. Também se tornou uma espécie de guru, cultuado por nomes como Barack Obama e Mark Zuckerberg.

Em sua primeira visita ao Brasil, ele recebeu a Trip no Copacabana Palace e, tentando preservar sua discrição em meio a um aparato digno de rockstar, recusou veementemente o rótulo. Como todo sábio, não quer ter a responsabilidade de entregar respostas, mas usa sua inegável capacidade de analisar o mundo para propor algumas das perguntas que precisam ser feitas por qualquer um que esteja disposto a encarar os desafios deste tempo: o que fazer em relação às mudanças climáticas ou à epidemia de fake news? Como lidar com as transformações que as máquinas vão impor ao mercado de trabalho? O que devemos ensinar aos nossos filhos?

Crédito: Divulgação (Revista Trip)

Parte do distanciamento necessário para refletir sobre essas e outras questões vem da Vipassana, técnica de meditação que pratica diariamente, por duas horas, há quase 20 anos. “Tenho certeza que não teria escrito nenhum dos livros que escrevi se eu não tivesse o foco, a clareza e a disciplina que a meditação me ensinou”, diz ele, que só abre sua agenda anual de compromissos pelo mundo após marcar um retiro de silêncio de 60 dias. São dois meses sem falar uma palavra, sem telefone, sem e-mail, sem livros e sem poder sequer escrever. “Passo esse tempo todo observando o que realmente está acontecendo agora. Para mim, não é um exercício religioso, não entro em contato com uma força maior. É o exercício mais pragmático que já experimentei pois ensina a perceber a realidade sem tentar transformá-la.”

Pegando carona no tema desta edição, falamos com Harari sobre o conceito de fé em seu sentido mais amplo: a confiança que depositamos em figuras, histórias e conceitos inventados pela própria humanidade para unir pessoas a objetivos comuns. “Não podemos ter cooperação sem essas histórias, mas elas devem servir para aumentar a felicidade humana e não o nosso sofrimento.”

Trip. O que é fé?

Yuval Noah Harari. Acho que a fé pode ser duas coisas diferentes, uma muito positiva e outra bastante negativa. O tipo negativo é quando você acredita em uma história sem questionar. Isso fecha a sua mente, pois você acha que tem todas as respostas e considera que quem pensa de outra forma está errado. O outro tipo não é a fé em uma história, mas em certos valores ou qualidades que são importantes de se desenvolver, como a verdade e o amor.

“As pessoas têm muito medo do desconhecido. A tendência é simplesmente aceitar uma certa história como verdade absoluta e não questionar mais”

Yuval Noah Harari

E no que você acredita? Ter fé na verdade talvez seja o que guia a minha existência. Mas não é uma coisa intelectual – “Eu acredito que exista uma verdade”. Não. Significa que eu trabalho todos os dias para tentar entender e desenvolver a verdade dentro de mim mesmo. Enquanto faço isso, me torno mais consciente de que não sei tudo e mais aberto para ouvir as pessoas e escutar visões diferentes das minhas pensando sempre: talvez eu esteja certo, talvez eu esteja errado.

As histórias que você formulou e publicou em seus três livros mais recentes têm sido muito bem recebidas. O que você diria para pessoas que passaram a te considerar uma espécie de guru ou que tomam o que você disse como verdade absoluta? Não façam isso. Eu não tenho todas as respostas. E deixo isso muito claro em meus livros. Em Sapiens, por exemplo, uma das grandes perguntas que ficam em aberto é: por que os homens dominaram as mulheres na maior parte das sociedades humanas? Eu ofereço várias teorias e digo que não sabemos a resposta, que a gente precisa pesquisar mais. Nos livros mais recentes, falo sobre o futuro da humanidade e algumas pessoas me veem como um profeta. Mas a verdade é que eu não sei como vai ser o mundo em 2050. O que tento fazer é mapear as possibilidades e enfatizar que o destino depende de nós, que ainda podemos tomar decisões. Eu não quero que quem leia meus livros simplesmente acredite no que escrevi. Tenho esperança que os leitores se concentrem nas perguntas certas, que pensem por si mesmos e que cheguem a respostas diferentes das minhas.

Você também diz que é preciso coragem para lidar com o que não sabemos. Considerando a época em que vivemos, quando não temos mais certeza de quase nada, como acha que estamos lidando com o desconhecido? Não muito bem [risos]. As pessoas têm muito medo do desconhecido. A tendência é simplesmente aceitar uma certa história como verdade absoluta e não questionar mais, só para sentir algum conforto. Isso é extremamente perigoso. Temos que construir sociedades e sistemas políticos com espaço para o desconhecido, para o erro. Essa é uma das grandes vantagens da democracia para a ditadura.

O espaço para o erro? Sim, na democracia temos consciência de que o erro existe, estamos preparados para ver políticos e eleitores errando e tudo bem, porque sabemos que é possível corrigir esses erros com facilidade. Ainda que a escolha de um presidente pareça um desastre, em quatro anos ganhamos uma nova chance de mudar as coisas. Em uma ditadura, a tendência é que o ditador nunca admita que errou. Se não consegue solucionar um problema, coloca a culpa em fatores externos e exige mais poder para contornar a situação. Seres humanos sempre falham, ninguém é perfeito. É impossível que um governo sempre tome as decisões certas. Então, precisamos construir um sistema político que leve erros, falhas e situações desconhecidas em consideração. Falar sobre tudo isso com sinceridade é fundamental para evoluirmos. 

No entanto, as pessoas parecem estar indo na direção contrária, no sentido de buscar respostas fáceis para questões bem complexas. Isso explicaria a ascensão da extrema direita no mundo?  Por que a história que eles vêm contando tem feito sentido para tanta gente? As pessoas estão perdendo a fé na história da democracia liberal e o vácuo é preenchido principalmente por fantasias nostálgicas. Se analisarmos os regimes de direita que vêm surgindo em diferentes partes do mundo, vemos que o que eles têm em comum é o fato de ignorarem grandes problemas reais do século 21 e apostarem no discurso de que houve uma era de ouro em algum momento do passado e que podemos recuperá-la. Quando as pessoas têm medo ou se deparam com o desconhecido, é muito reconfortante acreditar nisso. É mais ou menos como acontece quando a gente se perde no meio do caminho e decide voltar para o último local em que sabia onde estava. As pessoas têm essa tendência na política. Quando o mundo parece complicado e elas se sentem perdidas, passam a acreditar que o melhor a fazer é voltar para algum passado distante. O problema é que não dá para rebobinar a história.

A chave é tentar mudar a conversa pública e se concentrar nas perguntas certas. O que fazer em relação às mudanças climáticas? Como lidar com as transformações que as máquinas vão impor ao mercado de trabalho? Esses políticos populistas não têm resposta nenhuma para oferecer.

“Quando o mundo parece complicado e as pessoas se sentem perdidas, passam a acreditar que o melhor é voltar para algum passado distante ”

Yuval Noah Harari

Falando em passado, como você explica que atualmente, depois de tudo o que aprendemos, algumas pessoas duvidem da ciência e voltem a acreditar em coisas como a teoria de que a Terra é plana? É parte desse mesmo fenômeno de movimentos populistas. Eles atacam qualquer fonte de autoridade que possa limitar seu poder, e a ciência é uma fonte de autoridade muito central na sociedade moderna, que poderia agir como um controle do poder de políticos populistas e autoritários. Porque cientistas, se são bons cientistas, não obedecem ao presidente. Eles obedecem à verdade. Você assistiu àquela série da HBO, Chernobyl?

Sim, é maravilhosa! Ela narra um caso clássico do que acontece quando cientistas estão subordinados a políticos. Os políticos na União Soviética não quiseram admitir que houve um acidente e que milhões de pessoas estavam correndo perigo, nem assumir a responsabilidade por isso. E foi um desastre. Porque os cientistas não tinham a independência de falar para a população que esse era um acidente nuclear e que dezenas de milhões de pessoas estavam correndo perigo devido à radiação. Por isso é tão importante que os cientistas sejam independentes. Eles não deveriam ser encarregados de estabelecer políticas. Esse é o território de políticos eleitos pelas pessoas. Mas as políticas deveriam refletir os fatos. As mudanças climáticas são um exemplo clássico. Não cabe aos políticos, nem aos eleitores, decidir se elas são reais ou não. É uma questão científica. Já o que fazer em relação a essa questão é uma decisão política. Vamos criar um imposto de carbono? Estabelecer um acordo global? Vamos decidir não fazer nada? Ok, em 20, 40 anos vai ser difícil, mas se as pessoas votarem por isso tudo bem, faz parte da democracia. Mas elas deveriam votar conhecendo os fatos, e não negando-os.

A ciência também precisa aprender a contar boas histórias? Com certeza. Os cientistas precisam se comunicar com o público em geral de um jeito que todo mundo consiga entender. Se continuarem a usar apenas gráficos estatísticos e equações matemáticas, 99% da população vai seguir na ignorância. As pessoas precisam de histórias para cooperarem com uma causa ou umas com as outras e a ciência também precisa encontrar uma narrativa que encante para tornar isso possível.

É possível acreditar que as coisas vão melhorar mesmo quando tudo aponta na direção oposta? Qual a importância de seguir sonhando? Nem tudo está apontando pra direção errada. Agora vemos o surgimento desses regimes autoritários em diferentes países, mas na verdade a democracia está mais disseminada pelo mundo do que em qualquer outra época. Se compararmos a situação atual com quatro anos atrás, parece ruim, mas, se compararmos com 40 anos atrás, parece muito melhor. Houve uma melhora imensa de lá pra cá. Precisamos manter uma perspectiva mais ampla para não ficarmos perturbados. Mas também não devemos ficar complacentes, achando que as leis da história vão cuidar de tudo, que a democracia e os direitos humanos vão continuar se disseminando sem que a gente precise fazer nada. Não. Temos que lutar por essas coisas. E, pra isso, temos que ser realistas. Entender que nem tudo está perdido, mas que as coisas não vão acontecer sozinhas, depende de nós.

Fonte:  https://revistatrip.uol.com.br/trip/yuval-noah-harari-fala-sobre-o-conceito-de-fe-em-seu-sentido-mais-amplo?utm_source=twitter&utm_medium=site-share-icon 

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