A paciência da sociedade está no limite. Tempos sombrios. Tempos perigosos
A opinião pública brasileira, com razão, está de olhos postos no Supremo Tribunal Federal (STF). A sociedade, em sucessivas pesquisas de opinião, considera a corrupção e a impunidade os principais fatores de perpetuação da injustiça, da desigualdade e do atraso. Nesta semana o plenário do STF deve voltar a analisar a execução da pena após decisão de segunda instância.
As prisões sempre se deram em primeira instância no Brasil. A segunda instância passou a valer a partir de 1973, com a Lei Fleury, da ditadura, imposta para livrar da cadeia o delegado e torturador Sérgio Paranhos Fleury. Um jeitinho para proteger um poderoso de então. Privilégio. Decisão sob medida.
A regra geral da prisão após condenação em segunda instância, praxe seguida pela maioria das democracias do mundo, acabou prevalecendo na jurisprudência do Supremo. Essa regra foi interrompida pela Corte em 2009. Ao julgar um habeas corpus, o plenário entendeu, por 7 votos a 4, que a execução da pena só podia ser iniciada após o trânsito em julgado. O País assistia ao julgamento do mensalão. Figurões da República, envolvidos num escandaloso e capilar esquema de corrupção e compra votos, corriam o risco de ir para o xilindró. Coincidentemente, caiu a prisão após condenação em segunda instância. Privilégio. Decisão sob medida.
Em plena Operação Lava Jato, o STF voltou à prisão em segunda instância, com um placar apertado de 6 a 5. Desde então houve várias tentativas para que o Supremo reabrisse a questão. Boa parte delas com um objetivo obsessivo: obter a soltura do ex-presidente Lula da Silva. E, por óbvio, abrir os cadeados que incomodam os criminosos que dilapidaram dinheiro público.
Cresce, agora, a possibilidade real da consagração da plena, completa e total impunidade. E a palavra mágica, o eufemismo elegante, a senha para abertura das cadeias é a famosa “presunção de inocência”. O princípio, sem dúvida importante, tem sido instrumentalizado para justificar o pulo do gato: soltar a turma do andar de cima. Privilégio. Decisão sob medida. Mais uma vez.
Será, amigo leitor, que a execução da pena após decisão de segunda instância macula a presunção de inocência? A resposta é não. Na verdade, com o julgamento em segunda instância se encerra a análise das provas. As chamadas terceira e quarta instâncias – Superior Tribunal de Justiça (STJ) e STF – apenas analisam questões de Direito. Não havendo mais possibilidade de reavaliação probatória, não cabe dizer que há ainda inocência a ser presumida. A presunção de inocência não pode ser expandida a ponto de comprometer o bem comum e favorecer políticos corruptos e o crime organizado.
Como salientou editorial do Estado de S. Paulo, deve-se “respeitar, como é lógico, o direito ao duplo grau de jurisdição. Antes de iniciar o cumprimento da pena, todos têm direito a que um órgão colegiado avalie a correção da sentença de primeiro grau. Mas não há direito subjetivo a um terceiro ou quarto grau de jurisdição. E isso não significa que a Justiça seja autoritária. Trata-se simplesmente de reconhecer que a função dos tribunais superiores não é substituir as instâncias inferiores – o que ocorreria caso as decisões destas só valessem após análise pelo STJ e STF”. Quer dizer, por mais que o ex-presidente Lula tente posar de preso político, injustiçado e perseguido, o empenho não cola.
Por trás dos malabarismos do juridiquês temos um grande embate não apenas jurídico e político, mas, sobretudo, moral. A Operação Lava Jato mostrou um completo sistema, estruturado nos setores público e privado, para roubar dinheiro público. A população mais carente foi a principal vítima da máfia que tomou conta do Brasil. Mas a bandidagem não desiste. Os avanços da Lava Jato provocaram reação em diversas frentes. Culminou com a tentativa de desmoralizar a operação e o juiz Sergio Moro com base nas conversas grampeadas de integrante da operação. Tentam, desesperadamente, usar os pretensos diálogos para pedir a nulidade da operação. Como bem salientou Carlos Alberto Sardenberg, “precisam procurar algo fora do processo para tentar desmontá-lo”. Não conseguirão.
Na verdade, a possibilidade concreta de cadeia, consequência da condenação em segunda instância, acionou, à direita e à esquerda, o alerta vermelho no submundo da cultura da corrupção. Por trás dos embargos e recursos dos advogados, ferramentas legítimas do direito de defesa, o que se oculta é um objetivo bem determinado: a impunidade. A bandidagem conhece a morosidade do Judiciário e aposta todas as fichas na prescrição dos crimes. Trânsito em julgado, no Brasil, é o outro nome da impunidade.
Muitos leitores, aturdidos com a extensão do lodaçal que se vislumbra na onda de corrupção que assolou o Brasil, manifestam profundo desalento. “Não vai acontecer nada. Os bandidos não estão na cadeia, mas no comando do Brasil” – esse comentário me foi enviado por um jovem universitário. É tremendo, pois reflete o sentimento de muita gente.
Como disse um bom amigo, não há democracia sem justiça. E não há justiça se reina a impunidade. O STF pode consumar o maior golpe que a democracia brasileira poderia receber. A derrubada da condenação em segunda instância consagra a Justiça que privilegia os ricos e pune os pobres. Recursos infinitos custam dinheiro. Na prática compram a impunidade. A paciência da sociedade está no limite. A legítima revolta contra a corrupção, a delinquência e os privilégios não terminará. Continuará nas ruas. Tempos sombrios. Tempos perigosos.
A corrupção é, de longe, uma das piores chagas do organismo nacional. E a impunidade é a vitória das trevas. Ela mata o presente e sequestra o futuro. Esperemos, todos, que o Supremo Tribunal Federal, sobretudo seu presidente, ministro Dias Toffoli, não decida na contramão da cidadania. A prisão após o recurso em segundo grau pode mudar a cara do Brasil. (O Estado de S. Paulo – 04/11/2019)
CARLOS ALBERTO DI FRANCO, JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR