Em maio de 2008, um pouco antes do ápice da última crise global, a economia brasileira navegava em águas aparentemente calmas, o país ganhou o selo de bom pagador de dívidas. No jargão do mercado, foi promovido pelas agências de classificação de risco ao grau de investimento, uma vez que a categorização é feita para orientar investidores estrangeiros. A obtenção do selo teve um simbolismo forte – a superação da “crise da dívida”, que quebrou o país em 1982, iniciando longo período de baixo investimento público em infraestrutura, desequilíbrio fiscal, baixo acesso a crédito externo e precariedade nos serviços oferecidos pelo Estado.
O grau de investimento permitiu que o Brasil – governo e empresas – passasse a tomar recursos no exterior a custos mais baixos. Uma companhia pode ser muito bem administrada, lucrativa e pouco endividada e, mesmo assim, não alcançar o grau de investimento, o que encarece seu financiamento. Isso ocorre quando o país onde a empresa está inserida tem governos irresponsáveis, que não prezam pelo equilíbrio das finanças públicas. A relação é direta.
Todo cidadão deveria ter consciência do seguinte: maus governos, especialmente, os populistas, que usam dinheiro público para promover “bondades”, em tese formuladas para melhorar a vida dos mais pobres, são deletérios porque a conta sempre chega. E quando chega, é proporcional ao tamanho do rombo promovido nas contas públicas. Todos perdemos e os que mais sofrem são justamente os pobres, a quem os demagogos prometem ajuda quando adotam políticas inconsistentes. Toda iniciativa do Estado, mesmo aquelas que a maioria julga corretas, como o Bolsa Família, deveria ser avaliada constantemente para evitar desperdícios. Seria uma forma também de impedir que os populistas aparecessem com fórmulas mágicas.
Quando o Comitê de Política Monetária (Copom) eleva a taxa básica de juros (Selic) a alturas só alcançadas por espaçonaves americanas, o cidadão que se revoltar com a decisão deve realizar seu protesto na Praça dos Três Poderes, onde fica o Palácio do Planalto, em vez de no Setor de Autarquias, área de Brasília que abriga a imponente sede do Banco Central (BC). E não nos enganemos: a Selic está agora no menor patamar da história – 5,5% ao ano -, cairá mais até o fim do ano, provavelmente, abaixo de 5%, com o juro real (a taxa descontada a inflação) podendo chegar a 1%, mas, se as finanças públicas continuarem no vermelho e nada for feito além da reforma da Previdência, o juro voltará a níveis desconfortáveis no futuro próximo.
A história é conhecida e dispensa repetição de tão maçante, mas a ementa é necessária: em 2015, apenas sete anos depois de obter o grau de investimento, o Brasil perdeu o selo de bom pagador devido à expansão acelerada e insustentável dos gastos públicos nas três esferas de poder (União, Estados e municípios). Será que alguém considera coincidência a correlação entre esse fato e a longa crise que nos assola há longos seis anos, com recessão entre 2014 e 2016 e baixíssimo crescimento entre 2017 e 2019?
Se as finanças do governo não estão equilibradas, se o setor público gasta mais do que arrecada, isso, acredite, afeta negativamente inúmeros aspectos da sua vida, leitor. Endividado, o governo, inclusive o de políticos bem-intencionados, administra permanente escassez de recursos, fato que o obriga a fazer escolhas difíceis. A escassez piora a vida de quase todos. Alguns exemplos:
1) ruas e estradas onde se trafega ficam imprestáveis. Quando o serviço para cuidar dessa infraestrutura passa a ser fornecido por concessionários privados, custa os olhos da cara para o usuário que paga pedágio ou tarifa. Isso ocorre porque, ao fazer a concessão, os governantes, em geral, cobram valores de outorga e que tais altíssimos, com o objetivo de arrecadar e minorar o rombo fiscal. A fatura vai para o valor do pedágio e das tarifas;
2) sem dinheiro, os governos, com raras exceções, não se mexem ou não conseguem melhorar a qualidade de serviços públicos. Isso faz com que o cidadão não queira que seus filhos estudem em escolas públicas e não tenha coragem de internar seus filhos em hospitais públicos; quem não pode, não tem o que fazer; já quem tem dinheiro, põe os filhos em escolas particulares; bem preparados, os filhos de quem pode conseguem acesso às universidades públicas; os filhos dos pobres que chegam a algum lugar vão estudar em faculdades particulares, a maioria, de qualidade duvidosa;
3) a vida numa sociedade onde o Estado não equilibra as contas é mais cara. A carga de impostos é sempre mais alta, inclusive, que a de países ricos, para bancar as despesas do setor público, com destaque para o gasto com juros da dívida que não para de crescer. Se alguém lhe disser, leitor, que o governo brasileiro gasta muito com juros – 5% do PIB nos 12 meses encerrados em agosto, algo como R$ 350 bilhões – e que, portanto, é só baixar essa despesa que as coisas se resolvem, pergunte-lhe como fazer isso. Se ele disser que basta o governante dar uma canetada para reduzir essa conta, saiba que isso é mistificação. A conta de juros não é discricionária. Na verdade, é o resultado da boa ou má gestão fiscal;
4) o custo do crédito, nas economias regidas por Estados gastadores, é sempre impeditivo, especialmente para quem mais necessitam dele, ou seja, as famílias (que precisam de prazo para comprar bens duráveis, como automóveis, e adquirir a casa própria) e os pequenos empresários, que, sem financiamento, têm enorme dificuldade para empreender. Os juros na ponta, isto é, no crédito ao consumidor e às empresas, são elevados porque o governo se endivida muito e, assim, consome a maior parte da poupança disponível – no Brasil, além dessa, outras razões, como a concentração bancária, concorrem para o problema;
5) num país assim, os preços dos bens e serviços são mais altos do que na maioria das economias maduras, mesmo estas tendo moeda forte. É por essa razão que brasileiros de classe média alta fazem o enxoval de bebê e do casamento em Miami. A diferença de preços é tão grande que as famílias que viajam ao exterior voltam abarrotadas de produtos e se tornam alvos de fiscais da Receita Federal, que veem no excesso de bagagem dos turistas a tentativa dos mesmos de fazer comércio, prejudicando o fabricante nacional. Esta situação, originada pelo Estado ao qual estamos todos vinculados, mostra que “somos todos vítimas”. (Valor Econômico – 02/10/2019)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br