O ímpeto homicida — jamais materializado, de súbito revelado — de Rodrigo Janot tem um objetivo: vender o livro que está por lançar. Há método na confissão; cálculo na estratégia comercial, para a qual decerto colaborará o arbítrio de Alexandre de Moraes ao determinar busca e apreensão na residência do ex-procurador-geral da República. Vai vender. Recursos doentios de convencimento nunca foram tão bem-sucedidos quanto neste Brasil corrente. Vai vender. Não serão poucos os de coração mexido pela fantasia de um justiçamento contra ministro do Supremo dentro do tribunal. Vai vender.
Janot, lavajatista raiz, andava esquecido. Uma injustiça, sobretudo da parte do bolsonarismo. Poucos trabalharam tanto — dispararam tantas flechas a esmo contra a atividade política — quanto ele pela eleição de Bolsonaro. Missão cumprida, criminalizada de todo a classe política, o arqueiro sumiu. Não o fez sozinho. (Ou alguém terá notícia de Marcelo Miller, outrora dublê de procurador e advogado dos delatores irmãos Batista?) E decerto o fez com intuição. Antecipando o espírito do tempo, Janot sempre soube farejar quando, como — aqueles vazamentos medidos que o transformariam em fonte da paixão — e para quem falar. Um trovador de si mesmo.
Aí está. Ele voltou. Perdeu o sócio, mas retornou à militância. Ao revelar sua intenção de matar Gilmar Mendes com um balaço na cara, reencontrou lugar privilegiado entre os justiceiros jacobinistas no altar do bolsonarismo. Ou não teremos visto, da boca de graúdos pastores da fé bolsonarista, pregações segundo as quais Janot não merecia ser julgado, tão próximo teria estado de fazer a vontade do povo?
Não acredito em Janot. Nunca acreditei, conforme expressam os tantos escritos que dediquei a seu projeto de poder lavajatista-sindical. E não me surpreenderia se tivesse mesmo inventado essa novela best-seller: o desejo de matar o algoz togado, o vilão do STF, impulso em defesa da honra, a ser seguido de suicídio, movimento de repente dissuadido pela mão de Deus.
Sou grato à mão de Deus. Salvou duas vidas, mas sem poupar uma delas de expor o próprio desequilíbrio. É verdade que Janot — agente desestabilizador da institucionalidade — sempre teve atuação seletiva transparente, ajustando-se conforme as circunstâncias tocavam seu programa de ascensão privada, segundo exprimem suas existências antes e depois do impeachment de Dilma Rousseff. Estava lá para quem tivesse olhos de ver. Exemplo? Segundo também confessa, Dilma ainda presidente, teria sido pressionado por Michel Temer a não investigar Eduardo Cunha. Ficou bravo. Conta que xingou. Mas — sem qualquer reação funcional — não deixou de prevaricar. Janot já era atirador — ou não-atirador — de ocasião. A forma como manipulava a arma é que nos deveria chocar.
Nunca será demais, porém, ter acesso à mente do sujeito. Daí por que sou grato ao Senhor. Não se pode poupar o homem da própria perversidade o tempo todo. Verdadeira ou não a trama em que por pouco não matou o desafeto, de todo modo ficamos sabendo que essa cabeça — esse indivíduo duas vezes líder da lista tríplice entre os pares — comandou o Ministério Público Federal por quatro anos e foi herói (e ganha pão) de muita gente boa.
Procurador-Geral da República, Janot, este detonador de estabilidades, então representava o titular da ação penal; o detentor, delegado pela sociedade, do poder de acusar — uma prerrogativa que, depravada, converte-se facilmente em ferramenta para a defesa de interesses corporativos e em pistola para balear a reputação de adversários. Ou melhor: de inimigos. Quem entra — ou sonha entrar — armado, para matar, no local onde atua profissionalmente não tem senão inimigos.
Rodrigo Janot, este cérebro, foi procurador-geral da República contra seus ódios pessoais. Que nos lembremos da insustentável denúncia contra o presidente Temer, um engodo baseado na delação criminosa — ainda não extinta, muito menos esclarecida — dos donos da JBS; aquela flechada, de 2017, que paralisou o país, fulminou uma reforma da Previdência (que contrariava proveitos do MP) e jogou o exercício da política no lixo.
Janot levou o justiçamento — ainda que somente em delírio de bravura para fins de faturar — a outro nível. Não atirou em Gilmar Mendes; mas ora financia — há anos alimenta — os que gostariam de acanhoar o STF, a instituição. Janot é cabo e soldado. É simbólico do zeitgeist lavajatista que a mentalidade daquele um dia incumbido de denunciar formalmente, um marco da civilização contra a barbárie, cultive o elã de assassinar como maneira de defender a honra. Esse homem captou tudo. Ele é o próprio espírito do tempo. Ainda pode acabar ministro da Justiça.
Que Deus tenha misericórdia desta nação. (O Globo – 01/10/2019)