A passagem de um modelo ‘Estado dependente’ para um de mercado não é nem imediata nem automática
Felizmente os recentes dados da atividade vieram melhores do que esperado pelo mercado, revertendo tanto temores de uma recessão “técnica” quanto a caracterização de que a nossa economia estaria em depressão.
Ainda assim, nota-se o fato de que o crescimento acumulado dos últimos trimestres foi exatamente 1%, o que está bastante próximo da média dos últimos anos desde o fim da nossa Grande Recessão. Essa estabilidade medíocre deve nos surpreender. Afinal, muitas coisas, de bom e de ruim, têm acontecido desde 2017, e ainda assim estamos aparentemente atolados em medíocres 1%.
O foco do mercado no tamanho do crescimento não surpreende, mas pode também nos levar a não perceber mudanças qualitativas que devem ser importantes para fixar tanto o padrão como o tamanho do crescimento dos próximos anos.
Olhando os distintos momentos cíclicos da economia brasileira, podemos caracterizar os últimos anos da seguinte forma.
Quando o ímpeto global dado pela China começou a enfraquecer depois da crise global – fica claro hoje que a grande recuperação chinesa de 2009-2010 foi na verdade o fim, e não o começo, de um período de forte crescimento chinês -, a resposta da política econômica foi a de aumentar o nível de intervenção na economia como também o suporte financeiro advindo do Estado. Isso teve seu momento “anticíclico” inicial durante a crise global, mas acabou virando uma “política de Estado” no primeiro mandato da presidente Dilma, quando houve uma frustração em 2011 com o nível de crescimento da economia.
Uma forma de caracterizar este período, o da “Nova Matriz Econômica” entre 2012-2014, seria um conjunto de intervenções para tentar baixar os custos da indústria brasileira com a importante exceção do crescente custo laboral, fruto de um mercado de trabalho superaquecido. Seja por razões politicas ou ideológicas, a partir de 2012 não se aceitava desaquecer o mercado de trabalho para manter a inflação perto da meta, mas sim oferecer subsídios e intervenções em outros “preços” – como a taxa de juros e o custos com a energia e outros preços administrados – como “compensação” ao crescente custo unitário do trabalho.
Essa política econômica fracassou pela incapacidade de gerar o crescimento necessário para pagar seu custo fiscal. Fica claro, olhando os dados da época, que isso não se deu por uma realização precoce do mercado da crise fiscal que íamos enfrentar, mas sim pela falta de resposta adequada do produto a investimentos sendo feitos por mecanismos de comando e não mecanismos de mercado (o sistema de preços). Investiu-se mais, mas com eficiência decrescente.
Percebam então que chegamos a uma crescente dependência do setor privado pelo Estado, na medida em que o impulso externo enfraqueceu pós-crise global. Mas enquanto o impulso externo, cuja origem era a China, funcionou de forma harmônica – no sentido de não gerar desequilíbrios macroeconômicos – a substituição pelo modelo estatal gerou sua própria derrocada pela queda de eficiência e acúmulo de desequilíbrios macroeconômicos. A incapacidade dessa política “Estado dependente” de gerar crescimento resultou em um hiato estrutural entre receitas e despesas, o que gerou uma crise fiscal culminando no fim deste modelo.
A incapacidade dessa política “Estado dependente” de gerar crescimento não necessariamente determinaria seu fim se houvesse a opção de mantê-las vivas via financiamento inflacionário (pense no caso da Venezuela quando a queda do preço do petróleo não levou a um ajuste fiscal, mas sim ao uso da inflação como instrumento de financiamento). Como se resolve a limitação fiscal do fracasso de um modelo “Estado dependente” não é uma questão econômica e sim política. No nosso caso, apesar de temores que surgiram durante a campanha eleitoral de 2014, temos em 2015 mais uma instância de “pragmatismo com coação”, e o início do ajuste fiscal via queda das despesas discricionárias e, posteriormente, a queda do financiamento público do setor privado.
O fim da política “Estado dependente” pela restrição fiscal está nos levando por necessidade a um modelo focado no financiamento de mercado e alocação de recursos baseados em mecanismos de mercado. Mas essa passagem de modelos não é nem imediata nem automática. Podem surgir “buracos” entre o fim de um mecanismo de suporte estatal e sua substituição por seu equivalente de mercado.
Podemos dar dois exemplos. No caso dos investimentos públicos, muito restritos devido à necessidade de comprimir os gastos discricionários dado o crescimento dos gastos obrigatórios, a resposta “ótima” seria o “crowding in” do investimento privado via concessões, PPPs, etc, mas isso não acontece na proporção ótima devida, em parte devido ao lento e burocrático processo de aprovação das concessões, como riscos regulatórios e jurídicos.
O outro exemplo é o mercado de crédito, no qual a forte desalavancagem do setor público financeiro começa em 2015-2016, mas somente em 2017 vemos um crescimento relevante da oferta de crédito do setor privado (especialmente dos mercados de capitais).
Assim, apesar da economia ter se livrado do julgo estatal, não chegou à terra prometida. Estamos ainda no deserto, a caminho. Não há, como argumentam alguns, a possibilidade de voltar ao modelo “Estado dependente” pela falta de espaço fiscal.
O crescimento hoje é pequeno, sem dúvida, mas de melhor qualidade pelo fato de não ter por trás ou uma bolha de commodities, como tivemos entre 2004-2010; ou uma bolha fiscal, como tivemos entre 2012-2014. A economia brasileira hoje caminha com pernas próprias, e a melhor coisa é desamarrar a economia com a continuidade das reformas para termos as maiores taxas de crescimento possíveis quando a transição para um modelo de mercado se completar. (Valor Econômico – 27/09/2019)
Tony Volpon é economista-chefe do UBS Brasil e acabou de publicar ‘Pragmatismo com Coação: petismo e economia em um mundo de crises’ pela Alta Books.