A semana que passou foi complicada demais para caber num só artigo. Começou com aquele discurso de Bolsonaro na ONU e, no final, nem se falava mais nele.
Estava no Ceará cobrindo um encontro dos povos do mar. Nele, discutia-se o conhecimento das populações litorâneas: cultivo de algas para cosméticos e alimentação ou mesmo fazer um bonito lustre com escamas de um peixe grande, chamado lá de camburubim. No final do encontro, as praias nordestinas foram invadidas por um vazamento de óleo, morte de tartarugas e tudo mais.
Bolsonaro voltou de viagem, e dela ficou apenas sua briga com o cacique Raoni e a adolescente sueca Greta Thunberg, atacada pela família presidencial.
O grande fato foi produzido pelo STF, que aplicou uma derrota na Operação Lava-Jato e todas as outras que combatem a corrupção no Brasil.
Alguns processos serão anulados por uma filigrana jurídica: o condenado não apresentou suas declarações finais depois dos delatores.
A discussão desse tema poderia aperfeiçoar as coisas daqui para a frente. Mas anular processos que desviaram milhões só por causa da ordem final é apenas o sinal do momento.
A conjuntura mudou. A correlação de forças é outra. Os vazamentos do Intercept enfraqueceram a Lava-Jato, da mesma forma que a eleição de Bolsonaro, embora o discurso seja outro, e ele tenha integrado Moro ao seu governo.
Não adianta discutir filigranas quando a correlação de forças muda. A convergência de juízes com políticos e o próprio presidente tornou-se forte. Criou uma situação de fábula. O lobo comeria o cordeiro, independentemente do argumento. Como recompor, por onde recompor o sistema defensivo da sociedade para se proteger do sindicato dos ladrões?
No meu entender, e já escrevi isso, o primeiro grande golpe sofrido pela sistema anticorrupção partiu de Tofolli em conluio com Bolsonaro.
Ao neutralizar o Coaf, Tofolli quebrou o tripé da Lava-Jato, que era composto de PF, Receita e Ministério Público. Não se pode mais informar sobre operações financeiras suspeitas, sem autorização da Justiça.
No meu trabalho cotidiano, uso o tripé sempre que preciso de mais estabilidade na imagem. O tripé da Lava-Jato tinha uma função mais importante ainda: permitia ver coisas que escapam ao olho nu.
O que Tofolli fez com o apoio de Bolsonaro para livrar a cara do filho senador, Flávio, tumultuou inúmeras investigações no país e rompeu com alguns compromissos internacionais do Brasil no combate à lavagem de dinheiro.
Como acentuei, o bombardeio à Lava-Jato não significa apenas libertar os presos, mas reduzir as possibilidades de prender futuros envolvidos em corrupção. O velho esquema que domina o Brasil ganhou nova cara, encarnou-se em novos personagens, estruturou-se numa ampla frente e está pronto para reiniciar a roubalheira. Só que as condições não são as mesmas do passado. O nível de informações cresceu, a transparência se ampliou por força de lei.
Juízes, políticos e até jornalistas empenhados em derrotar o aparato de investigação contam apenas com um certo cansaço da sociedade. Ignoram as dimensões internacionais de sua escolha. No caso de lavagem de dinheiro, vamos nos isolar.
Aliás, já estamos isolados por causa das opções de política ambiental e pelo reposicionamento do Brasil no campo da extrema direita.
Quanto menos preparados, mais arrogantes são os governantes brasileiros. Tenho criticado a decisão de Bolsonaro de tirar os radares das estradas. Os especialistas também o fizeram. Meu ponto de vista é o de quem vive nas estradas.
Soube na semana passada que o número de acidentes aumentou, algo que não acontecia desde 2011. A quem apelar se a Justiça não se interessa, e os políticos querem apenas ganhar votos reduzindo multas? Em situações extremas, como foi a da África do Sul num determinado momento, intelectuais se voltam para o exterior, pedindo socorro.
Desfrutamos de liberdade de expressão. A sociedade brasileira não é uma coitadinha dominada por saqueadores. Ela encontrará o seu caminho. O apoio internacional é apenas um complemento. De nada adianta, sem que se faça a lição de casa. (O Globo – 30/09/2019)