A humanidade é o produto do desflorestamento para produzir comida, explorar minas, fazer cidades e abrir estradas. Foi nesse processo que as civilizações floresceram. O Brasil é exemplo disso. Desde nossa origem, crescemos ocupando territórios de árvores, de animais e de povos indígenas. Essa evolução sofreu uma mudança a partir da revolução industrial, com o poder dos equipamentos modernos para depredação e com voracidade insaciável pelo consumo. Em poucos anos, o que antes era ocupação passou a ser depredação irresponsável e irreparável. No lugar de ocupar espaço para melhorar a vida, a civilização industrial passou a devorar as florestas em ritmo que ameaça a sobrevivência da civilização, devido às mudanças climáticas.
A ciência mostra que o processo industrial e consumista dos últimos séculos está aumentando a temperatura no planeta e provocando desequilíbrio ecológico, que elevará o nível do mar, desorganizará a agricultura, provocará tempestades cada vez mais fortes. Salvo os obscurantistas, que no passado se negaram a aceitar que a Terra é redonda e gira ao redor do Sol, e os interesseiros, que lucram com ações que destroem o mundo, a humanidade começa a aceitar como verdade o cenário científico da catástrofe adiante. Por isso, milhões de jovens foram às ruas nos últimos dias querendo um futuro melhor, que desaparecerá se a destruição ambiental continuar.
Nesse cenário, o mundo olha para nós brasileiros como “geocidas”, assassinos do Planeta, por queimarmos e ocuparmos as florestas da Amazônia, tanto quanto queimamos e ocupamos a Mata Atlântica. Essa depredação não começou agora, tem décadas, mas agora ela se choca com a percepção dos limites do equilíbrio ecológico, com o sentimento de interesse coletivo da humanidade. Mesmo assim, alguns ainda insistem que temos soberania para queimar nossas florestas, mesmo que provoquemos o desastre ambiental planetário que nos afetará também. É a soberania sem inteligência, desconsiderando que somos parte da humanidade, e nossa soberania é limitada por ela porque, sendo parte dela, sem ela morremos.
Esse comportamento inconsequente decorre de ideias antigas: é a soberania do tempo em que era possível destruir árvores em velocidade menor do que ela renascia, e quando cada país podia funcionar como uma ilha. Esse tempo passou: destruímos mais rápido, quebrando a sustentabilidade, e cada nação deixou de ser independente, fazemos parte de uma imensa família humana e temos responsabilidade planetária.
A humanidade precisa de valores e cada país precisa se submeter a estes, em uma sintonia inteligente com o resto do mundo que leve a uma soberania humanista para também ser inteligente. Precisamos defender soberania derrubando as fronteiras políticas que servem para dar força a obscurantistas que não veem o desastre e aos interesseiros que não abrem mão do lucro.
O Brasil é um país chave neste debate entre o futuro e o presente, entre a soberania estúpida e suicida e uma soberania inteligente sustentada ecologicamente e respeitadora dos interesses e necessidades da humanidade a que pertencemos e do planeta onde está nosso território.
Nos tempos de hoje, é uma estupidez dizer “America First”, “Brasil Primeiro”, no lugar de dizer “Terra em primeiro lugar”, “Earth First”. Mas a estupidez e o egoísmo míope, faz os políticos populistas vencerem eleições. A posição de “nós primeiro” o resto não importa, é uma tragédia para a próxima geração, mas é uma delícia para a próxima eleição. Por isso, a democracia nacional e eleitoral, submetida ao obscurantismo filosófico e ao interesse econômico, leva ao pessimismo de que o mundo caminha para o desastre.
Diante disso, as manifestações mundiais de crianças e jovens nos permitem otimismo. Os milhões de textos e gestos de ecologistas não tiveram até hoje a força para convencer eleitores na defesa do meio ambiente, na proposta de um desenvolvimento sustentável, da proteção de nossas florestas. Os meninos e meninas que foram às ruas podem despertar os adultos. Eles certamente terão impacto nas eleições do próximo ano na Europa e nos Estados Unidos, certamente vão nos acordar para o fato de que no lugar de desflorestar para aumentar o produto, a renda e o consumo destruindo o Planeta, é preciso desfronteirizar a humanidade, perceber a responsabilidade que temos com a humanidade e o mundo no uso dos recursos nacionais. Entendermos que a Amazônia é nossa e nós fazemos parte da humanidade, sem fronteiras na defesa de interesses comuns da humanidade. (Correio Braziliense – 24/09/2019)
Cristovam Buarque, ex-senador pelo Cidadania-DF e professor emérito da UnB (Universidade de Brasília)