Thiago Carvalho: Sobre beijos, censura e hipocrisia

Crivella não liga para as crianças, apenas as instrumentaliza como meio de perseguição ideológica

Alegando fundamento no artigo 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella, que para infortúnio dos cariocas ocupa a cadeira de prefeito do Rio de Janeiro, ordenou no dia de ontem que suas forças inquisitoriais invadissem a Bienal do Livro e retirassem das prateleiras toda e qualquer obra que abordasse, de alguma forma, temas relativos ao homotransexualismo (sic).

Sim. O prefeito usa o sufixo ‘ismo’ para se referir aos homos e trans, deixando escancarada sua homotransfobia logo no primeiro parágrafo do ofício assinado por seu Secretário de Ordem Pública. Eu, francamente, não sei o que causa mais espanto, se é utilizar a terminologia que denotava distúrbio mental e retirada da lista da OMC há quase 30 anos, ou se é descobrir que o Rio de Janeiro tem um Secretário de Ordem Pública.

Eu me pergunto o que o prefeito, que vê em uma ilustração em quadrinhos de um beijo nada erótico entre dois homens algo merecedor de censura, pensaria se lesse em algum livro o seguinte trecho:

“…
Porque comereis a carne de vossos filhos, e a carne de vossas filhas.
…”

Você deve estar pensando: “Mas Hannibal não é livro para criança…” E de fato não é. Ocorre que esse trecho é de outro livro tão sádico quanto, a Bíblia (Levítico 26:29).

Mas calma que piora…

“…
Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado.

E os que o acharam apanhando lenha o trouxeram a Moisés e a Arão, e a toda a congregação.

E o puseram em guarda; porquanto ainda não estava declarado o que se lhe devia fazer.

Disse, pois, o Senhor a Moisés: Certamente morrerá aquele homem; toda a congregação o apedrejará fora do arraial.

Então toda a congregação o tirou para fora do arraial, e o apedrejaram, e morreu, como o Senhor ordenara a Moisés.

…” Números 15:32-36

Certamente vemos um lindo exemplo de amor e fraternidade que deve ser espalhado entre as nossas crianças.

E o que pensar do Salmo 137:9, que abertamente festeja assassinato de crianças de forma bastante cruel: “Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras.”

Seguindo nos horrores do livro sagrado, saca só esse trecho:
“…
Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, e diziam-lhe: Sobe, calvo; sobe, calvo!
E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou no nome do Senhor; então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.
…” 2 Reis 2:23,24

Basicamente, temos Deus desmembrando, através de duas ursas, 42 crianças, simplesmente porque chamaram o Espiridião Amim de careca.

Agora, se o bispo acha demonstrações homoafetivas uma abominação que ameaça a infância, o que diria de relações incestuosas entre pai e filhas? Provavelmente, deve achar normal, porque em Gênesis 19:34 temos a narrativa de uma filha que estupra o pai, após embebeda-lo. E vai além. A rapariga incita a irmã a fazer o mesmo. Vejam:

“…
No dia seguinte a filha mais velha disse à mais nova: “Ontem à noite deitei-me com meu pai. Vamos dar-lhe vinho também esta noite, e você se deitará com ele, para que preservemos a linhagem de nosso pai”.
…”

Parece que o bispo tem valores bem flexíveis quanto ao que é apropriado para uma criança, já que não mandou recolher e lacrar Bíblias expostas na Bienal.

Obviamente, não poderia deixar de falar de um dos momentos mais celerados da bíblia, quando Deus ordena Abraão a matar seu filho Isaac, em Gênesis 22: 1-13, por puro capricho.

“…
E aconteceu depois destas coisas, que provou Deus a Abraão, e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.
E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi.

E chegaram ao lugar que Deus lhe dissera, e edificou Abraão ali um altar e pôs em ordem a lenha, e amarrou a Isaque seu filho, e deitou-o sobre o altar em cima da lenha.

E estendeu Abraão a sua mão, e tomou o cutelo para imolar o seu filho;
Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde os céus, e disse: Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.

Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único filho.

Então levantou Abraão os seus olhos e olhou; e eis um carneiro detrás dele, travado pelos seus chifres, num mato; e foi Abraão, e tomou o carneiro, e ofereceu-o em holocausto, em lugar de seu filho.
…”

O que se vê é que a família bíblica, em muito se assemelha à família Nardoni, que mata seus filhos por trivialidades.

Há algo de muito doente com a pessoa, com a sociedade como um todo, quando se pensa que um livro violento, sádico e construído com base em valores distorcidos e antinatuarais é mais apropriado para uma criança, ou adolescente, do que um gibi que traz a representação em cartoon de um beijo, desprovido de erotismo, ou pornografia. Apenas um beijo. Apenas mais um beijo, como tantos outros que vemos em outras representações artísticas, tal qual o de Gustave Klimt, Toulouse Lautrec, Picasso, Giotto (que é apontado como o primeiro a retratar um beijo em pintura datada de 1305), Francesco Hayez, Roy Lichtenstein, ou da escultura de Rodin, ou de tantos outros artistas geniais que souberam capturar graficamente a beleza de um beijo.

O que difere o quadrinho causador da polêmica das demais representações artísticas, além, obviamente, do estilo, da época e do meio de reprodução? Nada. Beijo é beijo. Beijo é amor, é carinho, seja entre homens, mulheres, ou homens e mulheres. Não importa o agente retratado, o que importa é o sentimento transmitido.

Ao ordenar, o Inquisidor Bispo Crivella, que fossem recolhidos e lacrados todos os livros de conteúdo LGBTQI+, mas nada fazer com obras que apresentem teor romântico, erótico e até pornográfico heterossexual, ou que retratassem violência de alguma forma, tal qual a Bíblia, o prefeito não disfarçou sua homofobia. Fez uso do aparato estatal para impor sua visão preconceituosa e anacrônica.

O compromisso do prefeito não é com a preservação das crianças, mas sim com a perseguição contra os homossexuais, talvez em uma sinalização ao presidente da república, mendigando seu apoio na busca por uma reeleição que não acontecerá, face ao fracasso retumbante de seu deplorável mandato.

A cidade do Rio de Janeiro, administrada pelo censor Crivella, apresenta déficit de 32.839 vagas de creches municipais. Isso não é tudo. O Rio de Janeiro é o município que apresenta maior número de pessoas vivendo em favelas, com 22.03% de sua população total. A despeito desse número gritante, das 160 creches conveniadas pela prefeitura, apenas 56 estão dentro de favelas. Ainda com foco na atenção à mãe, à gestante e à criança, o município administrado pelo Bispo, em 2019, foi o que teve a menor cobertura do país na vacinação contra a gripe, que atingiu apenas 57,6% do público alvo. Ainda, segundo dados de 2016, aproximadamente 15 mil pessoas não têm onde morar no Rio de Janeiro. Na rede municipal de ensino, em 2019, foi constatado um déficit de 307 professores.

Com esses números escandalosos, que batem na nossa cara como um soco e deixam nossas crianças e adolescentes em situação de total vulnerabilidade, alguém ainda acha mesmo que a preocupação de Crivella é com a “proteção das nossas crianças”? Crivella está, usando um eufemismo, andando e sujando os calcanhares para as crianças e adolescentes cariocas, o que ele quer é fazer barulho e voltar ao noticiário através de algo que seja diferente do desabamento paulatino e periódico da ciclovia Tim Maia, mas felizmente seu plano não deu certo e ele sai desse episódio com a pecha de criminoso, homofóbico, improbo.

Mas voltando ao beijo, que foi como tudo começou, talvez Crivella prefira outro tipo de beijo (não, não estou falando do grego), o beijo de judas. Aquele que se faz de amigo para aplicar vil traição, o que acaba por ser uma alegoria muito adequada para retratar a relação entre esse prefeito e a população carioca. Isso sim é fato merecedor de censura.

Seu tempo acabou, Crivella.

Thiago Carvalho
Coordenador Estadual do Diversidade23–RJ

P.s: Esse texto foi uma provocação. Obviamente não defendo censura à Bíblia, por pior que seja enquanto literatura e por mais perversas que sejam suas passagens. Nenhuma censura à livre manifestação do pensamento, da atividade intelectual e das artes pode ser tolerada em uma democracia, obviamente respeitados os limites impostos pelos discursos de ódio.

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