NAS ENTRELINHAS – CORREIO BRAZILIENSE
A política externa está associada à projeção de poder de um Estado ou governo com base nos seus interesses nacionais. Essa é a regra básica, que pauta as relações entre mais de 190 países. É uma política pública, definida por decisões e programas governamentais que devem ter correlação com sua política interna. O Itamaraty conquistou o respeito mundial, desde o Barão do Rio Branco, pela excelência de seus quadros e habilidade ao conduzir os interesses brasileiros em meio aos conflitos e negociações nos foros internacionais. Tudo isso, porém, de nada vale para o presidente Jair Bolsonaro.
Regras básicas da política externa são ignoradas por Bolsonaro, que não mede as consequências de suas atitudes e declarações. Por exemplo, seus comentários sobre as eleições argentinas serviram para alimentar a campanha do adversário de seu aliado Mauricio Macri, que disputará a reeleição à Presidência em 27 de outubro. O candidato peronista Augusto Fernández, que venceu as prévias de domingo passado com grande vantagem, classificou Bolsonaro, ontem, de “racista, misógino e violento”, por dizer que o Brasil poderia ver uma onda de imigrantes fugirem da Argentina se políticos de esquerda vencerem as eleições presidenciais de outubro.
O peronista tirou por menos: “Com o Brasil, teremos uma relação esplêndida. O Brasil sempre será nosso principal sócio. Bolsonaro é uma conjuntura na vida do Brasil, como Macri é uma conjuntura na vida da Argentina”, disse Fernández, em entrevista ao programa Corea del Centro, da emissora Net TV. Será? Bolsonaro passa a impressão de que não está realmente empenhado no acordo do Mercosul com a União Europeia, cuja assinatura caiu no seu colo, porque foi resultado de um grande esforço pessoal de Macri, apesar do empenho continuado dos diplomatas brasileiros, que negociaram os termos do acordo por décadas.
É óbvio que se a oposição ganhar as eleições na Argentina, toda estratégia de Bolsonaro para a América do Sul estará comprometida, pois o regime de Nicolás Maduro na Venezuela sairá do isolamento em que se encontra no continente, reforçando sua sobrevida, hoje decorrente dos apoios da Rússia, essencialmente militar, e da China, sobretudo econômico. Se considerarmos a crise política no Paraguai, que quase provocou o impeachment do presidente Mario Abdo Benitez, por causa de uma negociação secreta no âmbito do acordo firmado entre Brasil e o país vizinho, para definir novos termos pelo pagamento da energia produzida por Itaipu, a situação pode se complicar muito no Mercosul.
Bolsonaro esticou a corda com a União Europeia. Quando deixou de receber o chanceler francês, Jean Yves Lê Drian, para cortar o cabelo, ou desdenhou da ajuda financeira da Alemanha e da Noruega para o Fundo da Amazônia, Bolsonaro agiu de caso pensado: demonstrou a intenção de se distanciar de parceiros europeus que não comungam com seus valores e posições ideológicas. É a contrapartida, por exemplo, da simpatia que tem pelos líderes de extrema direita Marine Le Pen, na França; Matteo Salviani, na Itália; e Nigel Farage, na Inglaterra. Todos têm um projeto de poder similar ao de Viktor Orban, na Hungria, parceiro de Bolsonaro na política internacional.
Alinhamento
É aí que a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada do Brasil em Washington, num acordo pessoal com o presidente norte-americano, Donald Trump, começa a fazer todo sentido. Bolsonaro quer estreitar os laços pessoais com o presidente Trump e vê nisso uma espécie de blindagem contra qualquer conspiração que possa envolver o Departamento de Estado norte-americano. Como sua cabeça funciona com os paradigmas da antiga “Guerra Fria”, faz sentido.
O problema é que a política externa não se faz apenas de forma bilateral. Desde a II Guerra Mundial, o multilateralismo vem sendo a principal garantia da paz e de regras duradouras para a convivência entre os povos. No momento, o Brasil tem grandes interesses estratégicos na China e na União Europeia que não recomendam um alinhamento automático com os Estados Unidos, bem como bater de frente com a Argentina, nosso terceiro parceiro comercial. Mas essa visão parte de uma compreensão da política externa como política de Estado, que parecia consolidada no Itamaraty desde Saraiva Guerreiro, no governo Geisel. É uma visão guiada por interesses nacionais de médio e longo prazos, que independem o partido que está poder.
Ocorre que, nos governos Lula e Dilma, a política externa brasileira passou a ser uma política de governo, guiada por interesses que variam de acordo com o projeto político hegemônico no poder. Nesse aspecto, a guinada à direita no atual governo seria uma mudança simétrica, mas não é o que está acontecendo. Bolsonaro não tem uma estratégia de projeção de poder do Brasil na cena mundial, tem um projeto pessoal de liderança ideológica no qual a geopolítica conta muito pouco. (Correio Braziliense – 14/08/2019)