A julgar pelos regimes de aposentadoria mantidos pela União, o Brasil possui três castas: a dos funcionários públicos federais, a dos militares e a dos trabalhadores do setor privado. Já se sabe que os cidadãos dos dois primeiros grupos possuem vantagens inomináveis, como aposentadoria integral e paridade (seus benefícios são corrigidos pelo mesmo percentual concedido aos funcionários da ativa). A turma do terceiro grupo se aposenta pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sujeitando-se a um teto que, hoje, está em R$ 5.839,45.
É sabido, também, que os privilégios do regime previdenciário dos servidores civis e militares e a uma série de despesas de caráter assistencial, criados pela Constituição de 1988 com viés civilizador, somados ao fato de que não se exige neste país idade mínima para o cidadão se aposentar, insanidade que permite a funcionários públicos se aposentarem aos 50 anos, geram há mais de uma década um rombo explosivo nas finanças públicas da União.
No ano passado, o déficit do RGPS atingiu R$ 194,3 bilhões. Agregando-se ao resultado outros três déficits previdenciários – dos servidores civis (R$ 46,4 bilhões), dos militares (R$ 43,9 bilhões) e do Fundo Constitucional do Distrito Federal (R$ 4,8 bilhões) -, a conta chegou a R$ 290,3 bilhões em 2018. Agravado por três anos de recessão (2014-2016) e outros três de expansão medíocre do Produto Interno Bruto (2017-2019), o buraco cresceu de forma acelerada (ver gráfico) e, agora, já consome cerca de 60% das receitas do governo federal. Trata-se de uma contradição: uma nação de população ainda jovem – onde há mais cidadãos em idade ativa do que aposentados – gasta mais com os idosos do que com as crianças, portanto, mais com o passado do que com o futuro.
A diferença entre os regimes previdenciários escancara a forma como o Estado brasileiro trata “iguais” de forma desigual. Enquanto o déficit por beneficiário do sistema dos militares ficou em R$ 115 mil em 2018, o do RGPS foi de R$ 6,4 mil e o do RPPS (Regime Próprio de Previdência Social), do funcionalismo federal, somou R$ 63 mil. Os números constam do Relatório Contábil do Tesouro Nacional (RCTN) de 2018, documento que faz radiografia das contas da União, revelando seu balanço patrimonial – neste momento, negativo em R$ 2,4 trilhões – e que será divulgado nesta quarta-feira, em Brasília.
Sindicalistas do serviço público alegam que a comparação entre os sistemas é inadequada porque os funcionários pagam a contribuição previdenciária sobre o salário bruto, enquanto no INSS o trabalhador paga 8% sobre salário-contribuição limitado ao teto de R$ 5.839,45. O argumento é cínico, afinal, a defesa da aposentadoria integral contraria a aritmética: não há cálculo atuarial que assegure uma conta como essa. Os sindicatos dizem ainda que, no cálculo do déficit do RPPS, o governo não contabiliza as contribuições dos servidores. Isso é falso, uma mistificação.
O relatório do Tesouro mostra que a provisão previdenciária do regime dos servidores civis e militares, também conhecida como passivo atuarial, já é de R$ 1,3 trilhão (dados de dezembro de 2018). Este montante representa o valor presente do total dos recursos necessários ao pagamento dos compromissos dos planos de benefícios, deduzidos dos recebimentos futuros, calculados atuarialmente, isto é, em determinada data. Os passivos atuariais reconhecidos no balanço patrimonial da União referem-se ao RPPS dos servidores civis e, desde 2017, às pensões dos militares.
O pessoal da casta do INSS ainda leva a culpa pela maior parte do rombo previdenciário. “Como o número de beneficiários do RGPS é bem maior que os dos outros dois sistemas, seu rombo em relação ao PIB é de forma disparada o pior: 2,85%, ante 0,68% dos servidores civis (RPPS) e 0,64% dos militares”, diz o documento.
O RCTN confirma que o Estado brasileiro quebrou. Só funciona ainda porque o Tesouro Nacional se endivida junto ao mercado (leia-se, à sociedade) por meio da emissão incessante de títulos públicos – em abril, a dívida bruta do governo geral, que compreende o governo federal, o INSS e os governos estaduais e municipais -, escalou para o equivalente a 78,8% do PIB, quase o dobro da média dos países emergentes.
O RCTN detalha o detalhamento da Receita Corrente Líquida (RCL) a cada ano desde 2009. No ano passado, a RCL atingiu 11,8% do PIB. As renúncias de receitas tributárias, em contrapartida, foram estimadas em R$ 283,45 bilhões no ano passado, ou 4,15% do PIB. Conforme o gráfico 45 do RCTN, esse percentual cresceu de 2,65% em 2011 para o pico de 4,71% em 2015.
O estudo mostra o peso crescente da Previdência social, cujos gastos aumentaram 134% em termos nominais desde 2009 e atingiram 37,58% do total das despesas da União. Juros e encargos da dívida avançaram 124% no mês período e ocupam o segundo lugar entre as despesas, com 15% do total. Em terceiro lugar vêm as transferências constitucionais e legais, com uma fatia de 14,32% das despesas e um avanço nominal de 97% desde 2009. (Valor Econômico – 12/06/2019)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras – E-mail: cristiano.romero@valor.com.br