A natureza proteiforme do populismo permite que ele se vista de direita ou de esquerda
Pudéssemos confiar em alguma forma de evolucionismo ou supor que a política acontece numa espécie de ringue previamente ordenado, em que os contendores só por descuido desferem golpes abaixo da cintura, então estaríamos num mundo em que extremistas não teriam vez nem voto. As democracias maduras do Ocidente teriam mantido força e capacidade expansiva, demonstradas quando, por exemplo, personalidades como Barack Obama, um negro, ou Angela Merkel, uma mulher egressa da velha Alemanha Oriental, se puseram à frente de seus países e se mostraram comprovadamente capazes de administrar situações complexas, como a grande recessão de 2008 ou os desafios da integração europeia.
As populações desses países, mesmo diante do impacto desorganizador trazido pela aceleração de mudanças tecnológicas ou por eventos extraordinários, como migrações massivas e a consequente formação de sociedades culturalmente heterogêneas, sempre teriam preferido tratar os conflitos daí decorrentes segundo padrões razoáveis e já submetidos aos testes da História. Longe de desaparecer, tais conflitos, inseridos na lógica democrática e tratados, quando fosse o caso, em instâncias internacionais assentadas nos direitos do indivíduo e na convivência pacífica, produziriam frutos positivos para todos, ao menos tendencialmente.
Nós, no Extremo Ocidente, a nosso modo replicaríamos esse procedimento. A planta frágil dos valores liberais e da incorporação social estaria finalmente sob bons cuidados. Seríamos educados politicamente pela Carta de 1988, a qual por sua própria natureza nos impôs a todos – centro, direita, esquerda – a tarefa da autorreforma de atitudes e modos de pensar. Nenhuma concessão ao golpismo tantas vezes manifestado em momentos críticos do passado. Ódio e nojo permanente às ditaduras, tal como proclamado por um dos pais da refundação da República. E como consequência, disputa áspera, mas institucionalmente enquadrada, em torno de ideias, projetos e políticas capazes de integrar milhões de concidadãos aos benefícios – e deveres – de uma sociedade aberta e dinâmica.
É evidente que falhamos coletivamente em pontos decisivos desse programa. A Carta de 1988 permanece como ideal regulador extremamente potente, razão pela qual devemos nos reunir em sua defesa sempre que ameaçada ou levianamente criticada por impor obstáculos de qualquer natureza ao nosso desenvolvimento como sociedade. Mas, como fatos e números atestam, eis-nos já na parte final de uma segunda década perdida, sem que, diferentemente da primeira, a dos anos 1980, possamos agora nos orgulhar de conquistas de alta relevância, como, naquela altura, a reconquista da democracia. Ao contrário, estamos em meio às tempestades naturais de uma conjuntura em que, mesmo mantidas as regras do jogo, autoritários estão no poder, embora não possam (ainda?) pôr em prática todo um repertório que, muitas vezes, reproduz o de uma estranha “internacional” que tenta depredar as instituições do Ocidente político.
Falhamos – e nisso a esquerda petista deu nociva contribuição – em enraizar solidamente a crença de que adversários políticos não são inimigos. Apesar do aspecto aparente de senso comum, como dizem Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no best-seller sobre o colapso “suave” das democracias contemporâneas, essa crença é “uma invenção notável e sofisticada”. O “eles contra nós”, irredutivelmente martelado durante anos entre “nacional-populares” e “neoliberais”, foi a senha para a entrada em cena de antagonismos ainda mais ferozes e inconciliáveis. A democracia requer e suporta polarizações produtivas, mas tem dificuldade de conviver com aquelas de que se aproveitam atores e personagens demagogicamente contrários ao establishment, especialmente quando, na verdade, tais atores expressam os poderes fortes da sociedade, e não o “povo” convocado para passivamente sustentar mitos e legitimar autocratas.
É possível apontar o caráter mais ou menos global desses fatos, embora seja este um consolo mau e precário. Não vivemos em solidão a ofensiva populista contra as instituições, para usar o ambíguo termo – populismo – a que críticos e adeptos têm recorrido com igual frequência. Mark Lilla, em O Progressista de Ontem e o de Amanhã, anotou uma expressão extraordinariamente radicalizada do subversivismo de direita que vai pelo mundo: “Meu cidadão ideal é o sujeito que trabalha por conta própria, estuda em casa, separa dinheiro para a própria aposentadoria e tem licença para andar armado. Pois essa pessoa não precisa do maldito governo para nada”. Aqui se condensam, de modo lapidar, os desvalores de uma direita patologicamente individualista e supostamente antipolítica, ainda que, por óbvio, possa combinar-se com variadas formas de governo despótico.
Ao empregarmos a noção de populismo, não devemos contar com ideias e programas coerentes. A natureza proteiforme do fenômeno lhe permite vestir-se de direita ou de esquerda, como na imensa tragédia venezuelana. O populista pode entoar loas à “tradição judaico-cristã” ou, como na Hungria de Orbán, recorrer ao vulgar antissemitismo. A islamofobia, se for o caso, convém-lhe como uma luva, servindo para catalisar medos coletivos. Pode renunciar ao individualismo à americana, como aquele captado por Lilla, e apelar, ao contrário, à “ressurreição” do povo e de usos arcaicos que sufocam o indivíduo. Só não pode, em qualquer caso, renunciar aos cinquenta ou mais tons de grosseira demagogia antidemocrática.
Se o evolucionismo não nos serve e, por isso, nenhum progresso está assegurado de uma vez por todas, pode ser que este tumultuado processo de unificação do mundo em algum momento nos surpreenda com o amadurecimento e a mobilização das mais diferentes forças e tradições, laicas e religiosas. Todas elas, em sua diversidade, são preciosas na luta contra a barbárie. (O Estado de S. Paulo – 19/05/2019)
Luiz Sérgio Henriques, tradutor e ensaísta, é autor de Reformismo de esquerda e democracia política (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)