A ausência do Brasil em conflitos armados de países vizinhos encontra guarida em dezenas de documentos, a começar da Constituição da República que, no parágrafo 4, prevê que as relações internacionais do país serão geridas pela autodeterminação dos povos, pela não intervenção, pela defesa da paz e pela solução pacífica dos conflitos.
O presidente da República poderia ter recorrido à Carta para justificar sua estimativa “próxima de zero” para o envolvimento do Brasil num conflito bélico com a Venezuela. Na entrevista que deu ao jornalista José Luiz Datena no dia em que teve início a intentona de Juan Guaidó, Jair Bolsonaro preferiu dizer que o Brasil “não pode fazer frente a ninguém” porque “não estamos bem de armamento”. Por isso, afirmou, a maior preocupação do Brasil não é invadir país algum, mas a de ser invadido.
É bem possível que o presidente esteja sendo sincero quando fala do sucateamento das Forças Armadas, mas exposto assim, no momento em que um vizinho está à beira de uma guerra civil e a região ameaça se transformar em novo campo de batalha mundial, o argumento revela o grau de despreparo do capitão para o embate em curso.
Além da verdade, a democracia é a segunda vítima
Não foi o único tiro n’água. Ao recorrer às redes sociais para se posicionar sobre o conflito, Bolsonaro disse que qualquer hipótese será decidida “exclusivamente” pelo presidente da República, “ouvindo o Conselho de Defesa Nacional”. Mais uma vez, deixou o livrinho de lado. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também pelo Twitter, lembrou-lhe que a Constituição, em pelo menos três artigos, explicita que a decretação de guerra não prescinde de autorização legislativa.
Naquele dia, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) já tuitava de Pacaraima, cidade fronteiriça de Roraima, onde desembarcara na véspera do levante de Guaidó. Um dos poucos brasileiros a não ter sido pego de surpresa pelo movimento, o deputado já estava posicionado quando o presidente decretou a Medida Provisória 880 destinando R$ 223,8 milhões para os refugiados em Roraima. É pela ajuda humanitária que Guaidó e seus aliados americanos têm se valido para legitimar a participação brasileira no conflito.
Na véspera da intentona, o chanceler Ernesto Araújo, outro homem certo no lugar certo, desembarcava em Washington para audiências com os dois principais conselheiros de Donald Trump em política externa, o secretário de Estado, Mike Pompeo, e o Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton.
O artigo 5 da Lei do Impeachment prevê que, além da declaração de guerra sem autorização legislativa, está, entre os crimes de responsabilidade contra a existência política da União, “entreter, direta ou indiretamente, inteligência com governo estrangeiro, provocando-o a fazer guerra ou cometer hostilidade contra a República, prometer-lhe assistência ou favor, ou dar-lhe qualquer auxílio nos preparativos ou planos de guerra contra a República”.
O presidente logo acionou o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), para desmontar as barricadas do presidente da Câmara. Afinado com a República do Twitter, Rodrigo Maia valeu-se da rede social para informar ter sido alcançado por mensagem do senador desmentindo que o pai se referisse a uma declaração de guerra quando falou em decisão exclusiva.
Os generais se revezaram para pôr panos quentes seja no escasso apoio de Guaidó na cúpula das Forças Armadas venezuelanas, seja no apego do Brasil a uma solução pacífica, mas Bolsonaro demonstrou que não é do tipo que entra numa loja de louça para ficar quieto. Comparou a situação na Venezuela à da Argentina, onde, explicou à audiência de Datena, a ex-presidente Cristina Kirchner ameaça azedar a reeleição de Mauricio Macri com nova candidatura à Presidência.
Como àquela altura parecia claro que Guaidó havia fracassado, Bolsonaro achou por bem comparar a permanência de Nicolás Maduro, escolhido numa eleição sem oponentes e sem a fiscalização internacional à eventualidade de, pelo voto livre dos argentinos, a ex-presidente voltar ao poder. Àquela altura, havia sobrado pouco da baixela, mas o presidente da República continuava a se sacudir, desta vez contra a alternância de poder democrática no vizinho meridional: “Temos uma preocupação grande com a Argentina assim como com a Venezuela”.
Enquanto nos EUA, Bolton e Pompeo se revezam para fustigar a Rússia, aliada de Maduro, o presidente brasileiro começa a estender o véu no qual, desde sempre, mantém envolta a Venezuela, sobre o resto do continente. A guerra ideológica já foi decretada. Nesta, além da verdade, a democracia é a segunda vítima.
Roraima
Um dos últimos brasileiros a encontrar Nicolás Maduro no Palácio Miraflores foi o senador Telmário Mota (Pros-RR). Presidente de uma subcomissão criada no Senado para acompanhar a crise na Venezuela, Mota teve um avião da FAB negado para a missão e chegou a Caracas a bordo de um avião do governo venezuelano.
O senador fez três pedidos ao ditador. Que escrevesse uma carta para Davi Alcolumbre (DEM-AP), na tentativa de buscar uma interlocução com o Congresso, presidido pelo senador. Que voltasse a vender energia para Roraima, que gasta o que não tem para se abastecer em termelétricas desde a interrupção do fornecimento e, finalmente, que as fronteiras fossem reabertas para que a economia do Estado não colapsasse.
Alcolumbre recebeu a carta, protocolou-a mas não deu seguimento à interlocução. Maduro disse ao senador de Roraima que as linhas de transmissão da hidrelétrica de Guri seriam reparadas e prometeu uma missão ministerial para encontros periódicos com autoridades do Estado. A intentona de Guaidó interrompeu o diálogo.
Em Roraima, as aulas nas escolas rurais ainda não começaram e há 500 pacientes na fila dos hospitais apenas para cirurgias ortopédicas. Mota calcula que haja 100 ônibus parados em Roraima que não conseguem entrar na Venezuela, mas, no dia do levante, ingressaram 865 venezuelanos no Estado. A presença de refugiados numa fronteira miserável pressiona por intervenção. (Valor Econômico – 02/05/2019)
Maria Cristina Fernandes é jornalista do “Valor”. Escreve às quintas-feiras – E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br