A “rememoração” da tomada do poder pelos militares em 1964 não saiu como o esperado pelo presidente Jair Bolsonaro, mas a iniciativa foi observada com atenção no Congresso Nacional. A oposição fez o que se poderia esperar dos partidos de esquerda, que alimentaram as redes sociais com notas de repúdio e articularam manifestações contrárias ao golpe. Com isso, também voltou-se para o passado, entrando na disputa pela narrativa histórica dos fatos que levaram o país a uma ditadura que durou 21 anos. Houve, porém, quem preocupou-se com o presente e o futuro.
O debate sobre o episódio ganhou corpo na semana passada, justamente quando a crise na articulação política entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional chegava ao seu ápice. O ministro da Economia, Paulo Guedes, adiava sua ida à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara para debater a reforma da Previdência.
Deputados aprovavam em dois turnos, com inusual rapidez, uma emenda à Constituição para reduzir a já restrita margem do governo federal para manejar o Orçamento. A atitude foi vista como uma demonstração de força, depois de um intenso embate verborrágico entre Bolsonaro e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Não bastasse, atritos entre militares e a chamada ala ideológica do governo alimentavam o desgaste do ministro da Educação. Diante de rumores de que demitiria Ricardo Vélez Rodríguez, Bolsonaro foi às redes sociais na quarta-feira e alertou seus seguidores: “Sofro fake news diárias como esse caso da ‘demissão’ do ministro Vélez. A mídia cria narrativas de que não governo, sou atrapalhado, etc. Você sabe quem quer nos desgastar para se criar uma ação definitiva contra meu mandato no futuro. Nosso compromisso é com você, com o Brasil”.
O risco de um presidente que pratica estelionato eleitoral e se recusa a conversar com líderes partidários não terminar o mandato é conhecido pelos brasileiros. Esse cenário extremo já vinha sendo citado por políticos experientes, que lembravam inclusive que a prerrogativa de abertura de um processo de impeachment é justamente do presidente da Câmara dos Deputados. O que surpreendeu os agentes políticos, no entanto, foi o fato de o próprio presidente da República escancarar sua preocupação com apenas 85 dias de mandato.
Coincidentemente ou não, Bolsonaro postou a mensagem poucas horas depois de a “Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964” ser divulgada pelo Ministério da Defesa.
Comedido, o documento sintetiza a visão das Forças Armadas do que ocorreu em 1964. Para os militares, atendendo a um clamor da maioria da população, foi feita uma revolução necessária num momento de polarização devido à Guerra Fria. Com ela, teriam impedido o avanço do comunismo no Brasil e uma escalada em direção ao totalitarismo, assumindo assim a responsabilidade pela estabilização nacional.
O documento também lembra que em 1979 foi feito um “pacto de pacificação” estabelecido pela Lei da Anistia, e reafirma que as Forças Armadas, “em estrita observância ao regramento democrático, vêm mantendo o foco na sua missão constitucional e subordinadas ao poder constitucional, com o propósito de manter a paz e a estabilidade”.
O comportamento dos oficiais da ativa deve ser registrado. Mantiveram uma postura moderada, mesmo diante da pressão de setores do governo e da população que demandavam uma celebração mais ostensiva no dia 31. Provocada, a Justiça acabou não alimentando a polêmica. E quem tem juízo no Congresso e no Executivo decidiu agir.
Depois de muita insistência de alguns de seus conselheiros, Bolsonaro parece ter ouvido as recomendações e está marcando reuniões com presidentes e líderes partidários para quando retornar de sua viagem a Israel. Parece ter sido convencido de que, sem aprovar a reforma da Previdência, dificilmente conseguirá destravar outros projetos de seu governo.
Às vésperas dos cem dias de governo, inevitavelmente o presidente passará a ser cobrado cada vez mais para entregar o que prometeu durante a campanha eleitoral. Não está sendo fácil.
Bolsonaro já se viu obrigado a recuar na promessa de logo transferir a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, frustrando a bancada e o eleitorado evangélico. Mais um exemplo vem do setor do agronegócio, que quer anistia de dívidas estimadas em R$ 17 bilhões contraídas com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (Funrural). No entanto, conforme revelou o Valor, técnicos do governo estão alertando o Palácio do Planalto de que o eventual apoio do presidente à ideia, apesar de representar o cumprimento de uma promessa de campanha, poderia resultar num processo de impeachment por crime de responsabilidade fiscal.
Caminhoneiros, que realizaram paralisações durante os governos de Michel Temer e Dilma Rousseff, seguem insatisfeitos e demandam uma postura mais efetiva da atual administração contra as empresas que têm desrespeitado a tabela do frete. Muitos deles fizeram campanha para Bolsonaro na última greve.
Além disso, apoiadores do presidente insistem em cobrar do Senado a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o Judiciário e até mesmo o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal. Já há uma manifestação marcada para domingo a fim de pressionar o STF a não mudar seu entendimento atual em relação à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, tema que tem criado atritos entre o Judiciário e integrantes da Operação Lava-Jato.
Apesar da insistência de colegas novatos nessa investida contra o Judiciário, senadores experientes do MDB, do DEM e do PSDB se articulam para desidratar esse movimento. Uma liderança do grupo argumenta: os Poderes constituídos por meio do voto popular estão pessimamente avaliados pela população em comparação com as Forças Armadas. “Não é hora de ajudar a enfraquecer o Judiciário.” (Valor Econômico – 02/04/2019)
Fernando Exman é coordenador do “Valor PRO” em Brasília – E-mail: fernando.exman@valor.com.br