Por Renata Bueno, ex-parlamentar italiana e advogada internacional
Roma – Como ex-parlamentar italiana e advogada especializada em Direito Internacional, venho esclarecer alguns pontos importantes sobre as implicações legais da cidadania italiana no contexto da possível fuga da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP), condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 10 anos de prisão por invasão de sistemas e adulteração de documentos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Até o momento, não há confirmação oficial de que Zambelli esteja na Itália. No entanto, um vídeo divulgado em suas redes sociais indicou que ela poderia buscar refúgio aqui, o que levantou uma série de dúvidas jurídicas sobre a possibilidade de extradição e sobre o papel da cidadania italiana nesse processo.
Durante meu mandato no Parlamento Italiano, atuei diretamente no caso de Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil condenado no Mensalão. Pizzolato fugiu para a Itália em 2013 utilizando um passaporte falso de seu irmão falecido. Apesar de possuir cidadania italiana, ele foi extraditado em 2015, após uma intensa cooperação entre os governos do Brasil e da Itália, que garantiu o respeito aos seus direitos no sistema prisional brasileiro. Na época, a Justiça italiana concluiu que a cidadania não bastava para impedir a extradição, especialmente porque ele não tinha vínculos reais com o país e usava o passaporte como um “escudo”.
Com base nessa experiência e no meu conhecimento jurídico, esclareço algumas das principais dúvidas que surgiram com o caso Zambelli:
A cidadania italiana impede a extradição?
Não. A cidadania italiana garante os mesmos direitos de um cidadão nato, mas não oferece imunidade absoluta. O Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, vigente desde 1993, estabelece que a extradição de nacionais italianos é facultativa, não proibida. Isso significa que os tribunais italianos podem autorizar a extradição, desde que os critérios legais estejam preenchidos — como a equivalência dos crimes e a pena mínima de um ano.
Zambelli é “intocável”, como afirmou?
Definitivamente, não. A Constituição Italiana, no artigo 26, permite a extradição de cidadãos italianos, exceto em casos de crimes políticos. A jurisprudência do caso Pizzolato mostra que a cidadania italiana não é um escudo automático. A Justiça italiana pode autorizar a extradição ou, alternativamente, instaurar um processo penal local, se os crimes forem reconhecidos pelo Código Penal italiano.
Ela pode ser presa ou julgada na Itália?
Sim. Com a inclusão de seu nome na lista vermelha da Interpol e o pedido de prisão preventiva feito pela Procuradoria-Geral da República, Zambelli pode ser detida pelas autoridades italianas. A decisão sobre a extradição caberá aos tribunais italianos. Também há a possibilidade de que ela seja processada localmente, caso os crimes imputados estejam previstos na legislação italiana.
Adulterar dados pode ser punido na Itália?
Sim. O Código Penal Italiano prevê penas severas para falsificação de documentos públicos:
Artigo 476: falsificação material de atos públicos cometida por funcionário público – pena de 1 a 6 anos;
Artigo 479: falsificação ideológica – pena de 1 a 5 anos.
Esses crimes podem ter agravantes se causarem prejuízo ao serviço público. A adulteração de mandados no sistema do CNJ, como no caso em questão, pode sim se enquadrar nessas tipificações, o que abriria caminho para uma ação judicial na Itália.
Reforço que a cidadania italiana de Carla Zambelli não a torna “intocável” perante a justiça — seja no Brasil, seja na Itália. Minha atuação no caso Pizzolato demonstra que o Tratado de Extradição Brasil-Itália e os precedentes judiciais permitem sim a extradição em casos de crimes graves. Além disso, a legislação italiana tem instrumentos eficazes para punir atos como a falsificação de documentos públicos.
A cooperação internacional e uma estratégia jurídica bem conduzida são essenciais para garantir que a lei seja aplicada de forma justa e eficaz. Ninguém está acima dela, independentemente da nacionalidade.