Ivan Alves Filho*
Aprendi com um mestre do valor de Nelson Werneck Sodré que mesmo quando realizamos algum trabalho “setorial”, algum estudo de caso em matéria de História, não podemos perder de vista a visão de conjunto. Caso contrário, a História deixa de ser um processo, tornando-se incompreensível. Ou seja, é preciso unir sempre o particular ao geral. E isso é válido também para a militância, a atuação política ou social de cada um de nós. Tudo é parte da luta e não há luta à parte, sempre observo isso.
Há um aspecto regressivo em algumas propostas identitárias atuais, por exemplo. Assim, elas, muitas vezes, desembocam em engajamentos que lembram as lutas pré-políticas. Nesse sentido, alguns estudiosos parecem se empenhar em abolir a história das lutas de classes. E as relações entre as classes são, essencialmente, relações de exploração. Os partidários da visão racialista, pela “direita” ou pela “esquerda” querem nos fazer crer que existe de um lado o eurocentrismo e de outro o identitarismo pós-colonial, decolonial ou algo nessa linha confusa e diversionista. E nada mais.
Afastam assim do nosso horizonte a possibilidade de as relações humanas poderem se dar de forma livre, em um ambiente histórico que exclua a opressão. Pior, tentam ignorar a existência da mestiçagem, tão presente em um país como o Brasil. Na visão identitária, o ser humano desaparece, em detrimento do negro, do branco etc. Ou seja, as diferenças se sobrepõem às semelhanças, sendo mais importante o que nos desune do que aquilo que nos une. É a própria dissolução do Humanismo. E não há nada pior do que isso. O contrário disso é retomarmos aquilo que o arqueólogo francês Yves Coppens definiu certa vez como “consciência de grupo”. No Brasil, historicamente, a classe dominante colonial volta e meia apelava para a questão racial, até como forma de se distinguir das classes dominantes das áreas centrais: após a Independência, por exemplo, a única coisa que a distinguia das classes dominantes das antigas Metrópoles era por vezes o tom de pele, uma vez que a classe dominante local manteve intacta toda a estrutura colonial, assentada no latifúndio e no trabalho escravo. Ou seja, a classe dominante local era um prolongamento da classe dominante de fora. Esse o ponto; o resto é simples manobra ideológica. Uma coisa é a crítica ao racismo; outra, totalmente diferente, é a racialização da política, a ideologização do fator étnico. Isso tem endereço certo: nazismo.
E essa lógica do identitarismo contaminou até mesmo os setores que pretendiam combater… o próprio identitarismo. Assim, para alguns analistas das eleições presidenciais norte-americanas de 2024, era incompreensível que um “hispânico” ou um “afro-americano” pudesse votar em Donald Trump e não em Kamala Harris. Essa visão considera que os cidadãos “hispânicos” ou “afro-americanos” são cidadãos diferentes dos demais cidadãos dos Estados Unidos, homens e mulheres à parte. Só que eles não são: são pessoas como as outras. Na visão desses analistas não pode haver um “hispânico” ou um “afro-americano” conservador, por exemplo. Todos teriam que ser progressistas, ao que parece. Quem determinou isso? Vá saber. Talvez uma visão ideológica e nada mais.
Já está mais do que na hora de revermos isso. O que muitas vezes chamamos de “esquerda” tem uma visão de mundo próxima do conservadorismo, ou até do reacionarismo mesmo. Assim, essa visão rechaça as mudanças tecnológicas em curso no mundo, temendo o desenvolvimento das forças produtivas. Além disso, coloca a racialização no centro da luta política, e exalta o nacionalismo, desprezando ainda a Democracia e seus valores. Mais: faz do confronto Estado X Mercado o eixo da luta econômica, esquecendo-se de que a oposição se dá entre capital e interesse social. A continuar dessa forma, estará tomando um caminho sem volta.
*Ivan Alves Filho é historiador.