Médico, pesquisador e um dos criadores do SUS, homenageado destacou-se na área da saúde pública
Autoria Tote Nunes – Jornal da Unicamp
Fotografia Antonio Scarpinetti
Em um gesto descrito pelo reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida Meirelles, como de “reparação histórica”, a Universidade entregou nesta quinta-feira (7) o título póstumo de Doutor Honoris Causa ao médico Sérgio Arouca. Considerado um dos mais importantes sanitaristas do país, Arouca foi perseguido pela ditadura militar e viu-se obrigado a alterar sua trajetória de carreira na Unicamp por imposição do regime de exceção. Em meados dos anos de 1970, Arouca acabou demitido por pressão dos militares.
De acordo com o reitor, a entrega do título neste momento serve de reconhecimento pela significativa contribuição do médico para o país como acadêmico e político, mas possui, também, uma dimensão de “reparação”.
“De certa forma, a gente está reconhecendo um erro, do qual a nossa instituição participou. A Universidade pode não ter sido o agente principal, mas, de algum modo, foi parte dessa história”, afirmou Meirelles. “Nós somos uma universidade que abraçou um compromisso forte com a democracia. Foi contestadora, abrigou muitos intelectuais da causa democrática, mas também cometeu seus pecados. E é importante que a gente reconheça isso. E esses pecados, de alguma forma, estão sendo corrigidos ao longo do tempo. Admitir que isso também ocorreu na história da Universidade é importante para evitar que, em novas situações difíceis, a gente ceda a esse tipo de pressão”, disse o reitor.
Arouca deixou a Unicamp e se transferiu para o Rio de Janeiro, onde chegou a ocupar a presidência da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), exerceu dois mandatos de deputado e ocupou cargos na administração pública.
Em cerimônia realizada na sala do Conselho Universitário, coube à filha mais nova do médico, a assistente social Luana Arouca, representá-lo
Considerado um dos mais importantes sanitaristas do país, o médico morreu em agosto de 2003, aos 61 anos, em decorrência de um câncer no intestino. Arouca contribuiu, de maneira decisiva, para a construção do modelo que resultaria no Sistema Único de Saúde (SUS), na opinião de muitos especialistas, a mais importante ação de política pública do país.
Na cerimônia realizada na sala do Conselho Universitário (Consu), coube à filha mais nova do médico, a assistente social Luana Arouca, representá-lo. Luana Arouca é coordenadora da Redes da Maré, uma organização não governamental (ONG) que desenvolve projetos sociais voltados para um conjunto de 15 favelas com cerca de 150 mil habitantes e localizado no bairro da Maré, zona norte do Rio de Janeiro.
Emocionada, Luana interrompeu várias vezes seu discurso para conter as lágrimas. Contou que tinha 15 anos quando o pai morreu e revelou detalhes da relação familiar, acrescentando guardar em relação ao pai memórias afetivas de infância e adolescência. Só mais tarde, já adulta, a hoje ativista percebeu a dimensão do trabalho científico e político do pai. “Ele morreu em casa, entre familiares e amigos. Muito pouco tempo depois de a gente ter sido informado que ele havia morrido, começamos a receber inúmeros telefonemas. E eu me perguntava como as pessoas teriam ficado sabendo, assim, tão rapidamente. Foi aí que percebi: a morte havia sido noticiada na televisão e então descobri a dimensão da figura dele.”
Legado e memória
Antonio Sérgio da Silva Arouca foi médico sanitarista, professor universitário, pesquisador e político, engajado na defesa da saúde gratuita como direito de todos e dever do Estado. Presidiu a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que estabeleceu as bases do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição Federal de 1988. Atuou como professor na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp entre 1967 e 1975 e, posteriormente, como professor e diretor da Fiocruz.
Sua tese, “O Dilema Preventivista”, publicada depois em livro, representa um marco da mudança de paradigma da saúde pública brasileira e um dos documentos que respaldam o nascimento da área da saúde coletiva. Entre os pesquisadores brasileiros, há consenso sobre essa tese ser uma obra seminal para a área, não apenas no Brasil, mas também nos demais países do continente sul-americano.
Na Unicamp, Arouca, então recém-formado, encontrou dentro do Departamento de Medicina Preventiva e Social um ambiente acadêmico caracterizado por criatividade, inovação, integração com outros departamentos e pelo fortalecimento das ciências sociais no currículo de formação médica, o que contribuiu significativamente para sua trajetória futura dentro da Universidade e, posteriormente, fora dela.
“Para quem é de nossa área, falar de Sérgio Arouca é desnecessário, porque todos reconhecemos seu trabalho. Nós nos desenvolvemos nos cursos ouvindo suas histórias e estudando sua obra. Mas, para quem não é da área da saúde coletiva, é importante dizer que sem verdade e sem justiça não haverá paz no Brasil. Para nós, este significa um momento de reparação e de restauração da verdade e da justiça”, disse a chefe do Departamento de Saúde Coletiva da FCM, Rosana Teresa Onocko. Pela manhã, antes da cerimônia no Consu, o auditório do departamento ganhou o nome de Sérgio Arouca.
A coordenadora-geral da Unicamp, professora Maria Luiza Moretti, disse que o médico “deixa um legado que transcende os muros da Universidade”. Na opinião da coordenadora-geral, Arouca oferece “inspiração” para aqueles profissionais que desejam se dedicar à saúde pública no Brasil e representa um exemplo de resistência. “Ele nunca se intimidou”, disse. O diretor da FCM, professor Cláudio Coy, afirmou que Arouca “é um dos maiores pensadores da saúde pública no Brasil”.
O médico nasceu na casa dos pais, na rua Florêncio de Abreu, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, em 20 de agosto de 1941. Estudou medicina na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Formou-se em 1966.
A comissão especial encarregada de analisar a concessão do título e integrada por membros do Departamento de Saúde Coletiva (os professores Aylene Emília Moraes Bousquat, Caio Navarro de Toledo e Nilson do Rosário Costa) avaliou, em seu relatório final, que a medida “ratifica um pleito de reparação histórica” e corresponde a um “autêntico resgate da memória e do legado intelectual e político” de Sérgio Arouca.